São Paulo, sexta-feira, 28 de fevereiro de 1997
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Personagem reflete confronto de duas Argentinas

DIEGO RAMIRO GUELAR
ESPECIAL PARA A FOLHA

Recém-estreada a versão cinematográfica da ópera "Evita" na Argentina (e hoje no Brasil), escutam-se já os ecos de uma polêmica que parece condenada a perdurar para sempre.
Qualquer análise que se queira fazer da figura de Eva Perón (política, sociológica, sentimental, religiosa) será insuficiente se não se incluir uma "dimensão secreta" da história da Argentina: a prolongada e nunca declarada guerra civil, que, quase sem interrupção, caracterizou nossa história política.
Em 1810 e 1880, matamo-nos como "federales" ou "unitários" (até ganharem esses últimos). Já em 1890, reiniciamos hostilidades, então éramos radicais ou conservadores.
Em 1916 (primeira eleição democrática), ganharam os radicais, e, até 1930, vivemos uma razoável calmaria (interrompida somente por algumas matanças de operários e imigrantes).
Em 1930, estreamos a técnica da utilização dos golpes de Estado militares por encargo da fração civil que se considerava impossibilitada de ganhar legítima e pacificamente as eleições.
Entre 1930 e 1942, inventamos a "fraude patriótica", forma enganosa de garantir que os conservadores (minoritários) ganhassem dos radicais.
Entre 1942 e 1945, houve generais que descobriram o oportuno argumento de ser aliadófilos e germanófilos. Até 1945 -quando entram em cena Juan e Eva Perón.
O justicialismo tem acesso ao poder nas primeiras eleições limpas desde 1928, cria uma burguesia industrial e estimula a organização sindical, consagrando direitos sociais até então desconhecidos.
Nacionaliza e estatiza os serviços públicos, desenvolve a siderurgia e irrita profundamente a quase metade da população, que se polariza entre peronistas e antiperonistas. Até que a violência volta a sacudir os argentinos com nova tentativa de golpe de Estado (que logo em 1955 derrubaria Perón), em 1953.
Entre 1953 e 1985 (eleição de Raul Alfonsin), desatam-se mais de 30 anos de violência crescente com golpes militares e eleições com proibição do peronismo. O clímax acontece entre 1976 e 1983: milhares de mortos, um milhão e meio de exilados, involução econômica, educativa e social, eis o saldo de tanta barbárie.
A "Argentina fraturada" começa a se reconstruir com a presidência Alfonsin, que reconstrói as instituições políticas e começa o processo de integração com o Brasil.
A presidência Menem inicia a recuperação econômica, com estabilidade, abertura e crescimento, acorda com o radicalismo uma profunda reforma política (Constituição de 1994) e funda com Uruguai, Paraguai e Brasil o Mercosul.
Juntos, Alfonsin e Menem desarmam os braços e os espíritos dos argentinos, que, cansados de tanto guerrear, chorar mortos e exílios (com música de tango) e acumular frustrações e inflações, põem-se a trabalhar sem olhar o vizinho como um inimigo.
Santa e prostituta
O leitor perguntar-se-á o que tem a ver tudo isso com Eva Perón? Muito simples.
A polêmica entre a Evita santa e a prostituta, a esquerdista revolucionária e a fascista oportunista é o reflexo dessas duas meias Argentinas que vinham se matando desde a independência, criando duas histórias paralelas com santos e diabos, dependendo de quem relatasse os fatos.
A polêmica de Eva não é diferente daquela de Borges ou do Che Guevara, ou a de milhares de estudantes, operários, profissionais e empresários que ficaram expostos ao fogo cruzado dos bandos em pugna.
Os grandes mitos são muito mais do que anedotas individuais. Expressam forças sociais profundas que necessitam vir à superfície e representam as aspirações e sentimentos de milhares ou milhões que se identificam com seus ídolos, sejam eles artísticos, políticos ou religiosos.
Para uma metade dos argentinos, Evita representou um trabalho digno, a possibilidade de educação, férias, o voto feminino, a proteção da infância e da velhice.
Para a outra metade, uma vergonha, o ressentimento feito populismo, uma ameaça subversiva.
Profecia
Eva Perón pronunciou certa vez uma profecia: "Voltarei e serei milhões".
Quarenta e cinco anos depois de morta, tendo vivido tão somente sete anos de atuação política e só 33 anos de vida, com seu cadáver embalsamado, sequestrado e vexado durante 16 anos, volta em milhões de livros vendidos por autores argentinos e estrangeiros, em milhões de discos de "Não Chore por Mim Argentina" e nos milhões de dólares ganhos com a "moda Evita".
A polêmica continuará viva, assim como a lembrança inapagável dessa mulher extraordinária, cuja memória é hoje respeitada por toda a comunidade argentina, que, reconciliada consigo mesma, pode julgar o passado com mais respeito e indulgência.

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