São Paulo, sexta-feira, 28 de fevereiro de 1997
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Pandemia de impunidade

CARLOS ALBERTO IDOETA

Em setembro de 1996, foram reveladas as conclusões de uma investigação oficial: manuais secretos de treinamento do Exército dos EUA ensinaram a torturar e a matar.
Datados dos anos 60, os manuais eram largamente usados até 1991 no programa de assistência aos serviços secretos estrangeiros na Escola das Américas, o Projeto X. Os militares latino-americanos foram alunos aplicados.
O que era exatamente o projeto e qual o seu alcance? Quem foram os responsáveis por sua execução e a quem se subordinavam? Quem foi treinado? A resposta a essas perguntas, solicitada publicamente pela seção norte-americana da Anistia Internacional ao governo do seu país, ajudaria a atribuir responsabilidades e a entender a extensão de um programa de exportação da repressão que produziu muito medo e dor e colaborou com a cultura da impunidade no continente em escala inédita.
Na Colômbia, ocorreram nos últimos cinco anos até dez homicídios diários vinculados à ação guerrilheira e à sua repressão. Quase todos impunes. Mais de 1 milhão de processos penais congestionam a Justiça, mais de 1 milhão de pessoas envolvidas com a produção e a comercialização de drogas.
O narcotráfico dá ao Estado colombiano o pretexto para atirar no mesmo balaio da repressão as reivindicações legítimas e os atentados contra líderes comunitários, sindicalistas e militantes de direitos humanos. Investigações judiciais comprovaram o apoio de membros das Forças Armadas aos grupos paramilitares. Os tribunais militares não punem seus pares nem pelos mais graves abusos cometidos nas operações de contra-insurreição. Obstrução e intimidação são a regra.
Foram documentados 8.960 casos de "desaparecimentos" durante o regime militar argentino (1976 a 1983). Entre os "desaparecidos", cerca de 200 crianças nascidas em centros de detenção clandestinos. Até outro dia, as pessoas se volatilizavam na Argentina. As leis de "Ponto Final" (1986) e "Obediência Devida" (1987) e os perdões presidenciais de 1989 e 1990 premiaram os culpados em todos os níveis hierárquicos.
Depois de 21 anos de regime militar no Brasil, a tortura, as execuções e os "desaparecimentos", antes cometidos contra a oposição política, e anistiados em 1979, foram adotados pelas polícias dos governos civis. Proliferaram os abusos contra presos comuns, os esquadrões da morte e os massacres.
A Anistia agora pede a independência dos IMLs e insta o governo federal a assumir as investigações, sempre que constatadas a manipulação e a destruição de provas vitais pelas autoridades estaduais.
Uma nova ordem de proteção e promoção dos direitos humanos cobrará o fim de uma Justiça Militar condescendente. A brecha no muro de silêncio foi aberta, em abril de 1996, com a condenação de um dos policiais envolvidos no assassinato de meninos de rua na Candelária.
No Peru, foram documentadas milhares de violações terminais nos últimos 16 anos. Só em um punhado delas os responsáveis foram julgados e punidos. A impunidade que marcou os quatro últimos governos foi admitida por uma lei de anistia, de junho de 1995, que, em nome da pacificação e da reconciliação nacional, perdoou todos os militares e civis envolvidos em violações de direitos humanos desde maio de 1980.
A Anistia insiste em pedir a investigação ampla e independente dos abusos cometidos sob o regime militar chileno (1973 a 1990). Entre os obstáculos, estão a resistência de parlamentares, a pressa de tribunais civis e militares em encerrar casos e a lei de anistia do general Pinochet, de 1978. O estado de sítio em vigor até aquele ano foi o cenário da repressão, especialmente da Dina, a Dirección de Inteligencia (sic) Nacional.
As atrocidades continuam, agora sob governos civis eleitos e com compromissos explícitos perante seu país e o mundo, legislações e instituições para a proteção da pessoa. O hiato entre retórica e prática convive com leis de anistia que mandaram a mensagem errada e impedem a busca da verdade e da justiça.
Em nome da reconciliação, uma sociedade pode decidir pelo perdão a torturadores, assassinos e mandantes. Mas não pode haver reconciliação sem justiça.
Os processos judiciais precisam ser concluídos; os veredictos, conhecidos; a responsabilidade das Forças Armadas ou policiais, admitida; os restos mortais, localizados; a verdade, revelada.
A prevenção pode se dar pela punição ou pela clemência, e a prisão não é a única alternativa de punição. A compensação devida às vítimas, não só financeira, é, então, a conquista da paz.

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