São Paulo, sábado, 1 de março de 1997
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Tchaikovski é noturmo

ARTHUR NESTROVSKI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Não são só as ragas indianas que têm hora certa do dia para se ouvir. Um concerto como este, por exemplo, não é para a manhã, nem para a tarde. Explosivo, tempestuoso, lírico e dramático, seguindo uma lógica ou antilógica própria, o concerto nº 1 de Tchaikovski (1840-1893) é música da noite, quando o cérebro se livra das ingenuidades do início e das desilusões do fim do dia.
O concerto é um cenário inspirador para a exuberância de Martha Argerich, que passa a ser uma de suas donas. No início da década de 70, ela gravou pela primeira vez o concerto, com seu marido na época, Charles Dutoit, regendo a Royal Philharmonic Orchestra.
Essa gravação foi relançada recentemente, na série "Classikon" da Deutsche Grammophon, mas não resiste a uma comparação com a nova, gravada ao vivo, em Berlim, com a filarmônica regida por Claudio Abbado.
Martha Argerich, 25 anos depois, parece 25 anos mais jovem, mais cheia de energia e imaginação. Cada nota tem vida própria, o sentido do imprevisível e ao mesmo tempo do necessário.
Uma ânsia de verdade, não de beleza, um espírito de rebelião formal e humana, o abandono das distinções de estilo, entre o "popular" e o "clássico", um entusiasmo pela prosa musical, sem métrica certa: tudo isso caracteriza a música de Tchaikovski.
É o "realismo" da música do século 19, rotulada genericamente de romântica. No concerto, de 1874, o desassossego realista chega a extremos quase escandalosos, como no famoso primeiro tema, que abre o concerto de modo inesquecível e depois nunca mais se ouve; ou na irrupção de um episódio fantástico, em plena tranquilidade chopiniana do segundo movimento; ou nos acentos ucranianos do último, ressaltados por Argerich e Abbado.
Há poucos dias, escrevi sobre outro grande CD de Martha Argerich, tocando obras para dois pianos de Strauss, Ravel e Dukas, com Alexandre Rabinovitch (Teldec).
Junto com o concerto de Tchaikovski, o novo CD traz também a reedição de outra peça para dois pianos, a "Suíte Quebra-Nozes", transcrita do original para orquestra pelo cipriota Nicolas Economou, que acompanha Argerich.
Ao contrário do concerto, aqui Tchaikovski está à vontade, escrevendo para bailarinos e crianças. A versão de Economou, de 1983, é uma façanha da arte da tradução e compensa o que perde em cores com o que ganha em transparência e contraponto.
Argerich e Economou tocam tudo com alegria e bom humor, para as suas respectivas filhas e o resto de nós. Mas a "Suíte", agora tristemente, é uma elegia também para o pianista e compositor Economou, morto em 1993, aos 40 anos.

Disco: Tchaikovski: Concerto nº 1 para Piano e Orquestra
Intérprete: Martha Argerich
Lançamento: Deutsche Grammophon
Quanto: R$ 20, em média, cada CD

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