São Paulo, sábado, 8 de março de 1997
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Direito do clone

WALTER CENEVIVA

Vamos supor, só para dar asas ao argumento, que a clonagem do ser humano seja viabilizada pelos pesquisadores e que -rompendo barreiras- tenha sua prática acolhida. A clonagem estará para o direito assim como o Vesúvio esteve para Pompéia: sobrarão as cinzas e a memória de uma vida anterior. Com o direito do clone, todo o sistema legal composto a partir do século 18 terá de ser mudado.
Será assim porque todos os direitos existentes no mundo, públicos ou privados, partem da consideração do indivíduo, homem ou mulher, como o centro das ações juridicamente viáveis. Claro que a pessoa jurídica tem personalidade própria, mas ainda assim, opera por meio de ações humanas.
Cada ser humano é uma individualidade distinta das demais. O primeiro sinal do turbilhão de incertezas previsíveis com a clonagem é fácil de perceber. Imagine o leitor dez clones iguais, até com a mesma impressão digital, ainda que com dez nomes diferentes.
O direito de família, em face do clone, seria subvertido. Pensemos como seriam, por exemplo, as questões de alimentos, de herança, mas principalmente de filiação. Hoje o direito considera que cada ser humano tem ascendentes, isto é, pais biológicos ou por adoção. Contudo, dez clones extraídos da matriz genética de um homem e do oócito da mulher, não serão filhos deles. Nem irmãos. Será necessário criar uma nova relação de parentesco, hoje ignorada, mesmo que continue a implantação dos embriões em ventres de outras mulheres.
Mas, indo além. Dentro de mais alguns anos a ciência evoluirá a ponto de dispensar a gravidez da mulher para permitir o nascimento de novos seres. Os chamados ventres de aluguel serão superados. Úteros artificiais serão criados, como se criou no passado -com perdão pelo exemplo- a incubadora elétrica para substituir a galinha choca. Combinando a idéia do clone e a do útero artificial, chega-se muito perto do que Aldous Huxley imaginou no livro "Admirável Mundo Novo".
No Brasil, a lei nº 8.974, de 5 de janeiro de 1995, impõe severas restrições ao uso das técnicas de engenharia genética, entre as quais a manipulação de células germinais humanas. O legislador do futuro se preocupará com a eventual obrigatoriedade de impor a esterilidade dos clones, para impedir a degenerescência genética dos nascidos de pais oriundos do mesmo tronco familiar. A imposição será óbvia se vier a ser possível dois clones de sexos diferentes. Sem a esterilidade, os dois poderiam gerar filho que, a rigor, seria de uma só pessoa, embora representada por dois corpos.
Também serão mudados os conceitos próprios do direito criminal, pois a eventual criminalidade do clone resultaria de um defeito coletivo de produção. Se o clone cometer um crime, isso significará que todos os seus iguais, oriundos do mesmo processo gerador, serão co-autores do delito, pois embora ocupando diversos corpos, corresponderão sempre a uma só pessoa. Não se tratará, portanto, de punição indo além da pessoa do delinquente, o que é, hoje, constitucionalmente vedado. A pena os atingirá, embora não tenham sido agentes da ação criminosa.
Está na hora de parar com a imaginação. Solta, ela levará a alternativas ainda mais absurdas. Voltando ao terra-a-terra da vida, a clonagem, mais do que um problema ético ou religioso, constitui uma ameaça à própria natureza essencial do ser humano. Por isso, é inaceitável. Por isso, é justa sua proibição, decorrente da lei nº 8.974/95.

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