São Paulo, sábado, 8 de março de 1997
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Judiciário decide partir para decisões inusitadas

EUNICE NUNES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Decisões judiciais inusitadas e polêmicas têm sido cada vez mais frequentes no Judiciário brasileiro. Elas refletem uma tendência de transformação na mentalidade e, portanto, na forma de decidir dos juízes.
Embora lento, é um processo que vem crescendo desde 1988, quando foi promulgada a atual Constituição.
Não é um movimento coordenado e uniforme. Mas é perceptível em decisões que privilegiam a Constituição e a realidade social, em vez de se restringirem à interpretação literal da lei.
Enquadram-se nesse padrão, por exemplo, as decisões que têm autorizado o aborto em caso de grave anomalia fetal que impossibilite a vida do feto fora do útero materno (leia texto abaixo).
É o caso também de decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que absolveu um encanador acusado de ter estuprado uma menina de 12 anos, porque ela confessou ter concordado em manter relações sexuais com ele.
Segundo o Código Penal, manter relação sexual com mulher menor de 14 anos é crime de estupro, mesmo que não tenha havido violência. Nesse caso, a lei considera a violência e, por conseguinte, o estupro, presumidos.
"A lei é ponto de partida, não de chegada. O juiz tem o poder/dever de completar a lei no momento de sua aplicação ao caso concreto. A Justiça conduzida dessa maneira livra-se das tecnicalidades e vai ao ponto essencial. É muito bom que os juízes estejam percebendo isso", diz Dalmo de Abreu Dallari, advogado e professor de teoria geral do Estado na USP (Universidade de São Paulo).
Lafaiete Pussoli, advogado e professor de filosofia do direito na PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), tem a mesma opinião.
Pussoli acredita que a transformação em curso é benéfica, pois confere maior legitimidade ao Poder Judiciário.
Não se trata de julgar contra a lei ou de acordo com os critérios pessoais de Justiça do juiz, mas de interpretar a lei à luz da Constituição, dos costumes e dos princípios gerais do direito.
Segundo Dallari, é preciso acabar com o vício de considerar direito e lei sinônimos. Há valores sociais que levam ao reconhecimento de um direito, mesmo que ele não esteja previsto na lei. Ele lembra que o direito à vida só foi reconhecido em lei na atual Constituição embora já existisse.
"O juiz precisa fazer uma releitura da lei, sempre à luz da Constituição e da realidade social. Não pode mais submeter-se cegamente a uma legislação injusta. Afinal, temos tribunais de Justiça, não de legalidade", afirma o juiz Urbano Ruiz, presidente da Associação Juízes para a Democracia.
No entanto é preciso cuidado para não cometer arbitrariedades, sob pena de causar insegurança e criar uma ditadura do Judiciário.
Para que isso não aconteça, o juiz precisa conhecer bem todo o ordenamento jurídico, de forma a construir novas interpretações com base nele e sem sair dele.

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