São Paulo, sábado, 8 de março de 1997
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Celso Furtado e a construção interrompida

RUBENS RICUPERO

Numa pequena obra-prima da oratória minimalista, Oswald de Andrade fez em 1949 o elogio do seu antípoda, Rui Barbosa. Mais do que o seu vernáculo, o seu purismo, o que ficara de Rui, dizia, era a capacidade de sacrifício. "Ele soube sempre perder... Como a semente do Evangelho que precisa morrer para purificar, ele soube sempre morrer pelo dia seguinte do Brasil."
Saber perder, ficar à margem do poder, conservando a dignidade, sem amargura, tem sido, para mal de nossos pecados, o destino de alguns dos maiores brasileiros. A qualidade dos homens é muitas vezes a razão da diferença entre sucesso ou fracasso na vida das nações. Sempre me pareceu por isso que a incapacidade do país ou dos setores dirigentes de oferecerem a esses homens uma chance duradoura tem algo a ver com a persistência de nossos problemas.
Numa vida pública tão pobre em talento, essa indiferença e até hostilidade à inteligência e à cultura surpreende ainda mais, se é que não se encontra justamente aí a raiz daquela pobreza.
Joaquim Nabuco, por exemplo, apesar da militância política, nunca foi ministro. Para ficar mais perto dos dias atuais, Celso Furtado e San Tiago Dantas dispuseram apenas de uns poucos meses para tentar salvar da catástrofe a economia e com ela o governo Goulart, que, aliás, a rigor nunca chegou a existir, como disse seu ex-ministro do Planejamento cerca de 17 anos mais tarde. Nesse depoimento, Furtado lembrava que, demasiadamente contestado desde o início, o governo de então jamais conseguira sair de uma situação de transitoriedade. Seu próprio chefe fora uma espécie de candidato a alguma coisa e não propriamente um presidente.
Todas essas lembranças daqueles tempos tumultuosos voltaram-me à memória ao participar, há uma semana, do colóquio organizado por iniciativa de Ignacy Sachs em Paris pela Maison des Sciences de l'Homme e a Universidade Pierre Mendès France de Grenoble para marcar a concessão por esta última do doutorado honoris causa a Celso Furtado.
É talvez inútil cogitar de "tudo o que podia ter sido e não foi" se naquela época se tivesse dado ao Plano Trienal a possibilidade de fazer jus ao seu nome. Creio de minha parte que se teria podido evitar a transformação da política em tragédia e salvar a frágil, imperfeita, por vezes irresponsável democracia da Constituição de 1946, mas de todo modo democracia, capaz, apesar de tudo, de permitir a idade de ouro da segunda metade dos anos 50 e outra obra de Furtado, a Operação Nordeste e a Sudene.
Impedido injustamente de trabalhar para seu país como servidor público exemplar, Celso se dedicou a enriquecer de dimensões sempre novas uma obra intelectual que honra a cultura brasileira do último terço de século.
Todos conhecem a frase de Antonio Candido segundo a qual sua geração havia sido marcada por três livros: Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, Formação do Brasil Contemporâneo - Colônia, de Caio Prado Júnior e Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre. A essa lista é hoje obrigatório acrescentar Formação Econômica do Brasil, única contribuição indiscutível do último meio século à compreensão do Brasil.
Francisco de Oliveira, que teve participação notável no colóquio, fixou há anos a comparação definitiva com os livros anteriores: "A obra de Furtado", comentava, "vai mais além: não porque seja teoricamente superior, senão porque foi escrita 'in actione'. Enquanto as anteriores explicaram e 'construíram' o país do passado, a de Furtado explicava e 'construía' o Brasil dos seus dias: era contemporânea de sua própria 'construção"'.
Ortega y Gasset disse de Wilhelm Dilthey que ele não havia tido tempo para sua obra. Não se referia à exiguidade do tempo físico, mas à falta de atmosfera receptiva a suas idéias sobre a historicidade de todo conhecimento.
De Celso Furtado pode-se dizer que o tempo lhe fez cruelmente falta nos dois sentidos. De início, porque não lhe deixaram o tempo de completar seu trabalho de construção do Brasil. É devido em parte a essa "construção interrompida", título de um de seus livros, que os problemas aos quais se dedicou, Nordeste, a estrutura agrária arcaica, o falso desenvolvimento sem Justiça, a criação da cultura nacional, restam como esboços inacabados que voltam a nos importunar continuamente.
Faltou-lhe, em seguida, o tempo de recepção capaz de captar e compreender a profundidade e riqueza de um pensamento em constante renovação, passando da economia e da história à arte e à filosofia, de um autor que jamais se contentou em ser o homem ou o autor de um só livro.
Tenta-se hoje impor ao Brasil e à América Latina um paradigma empobrecedor e distorsivo, elaborado fora da região por gente alheia à sua cultura e aos seus interesses. É hora, pois, de voltar à fonte do pensamento e da ação de Celso Furtado, a fim de retomar a iniciativa intelectual perdida e repensar a realidade brasileira e latino-americana, com atenção às mudanças recentes, mas à luz da cultura, dos valores e dos interesses de nossos povos.

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