São Paulo, sábado, 8 de março de 1997
Próximo Texto | Índice

Harold Brodkey sai de sua treva

MARCELO REZENDE
DA REPORTAGEM LOCAL

Nos últimos dias de sua vida, o escritor norte-americano Harold Brodkey sonhava que o mundo era um lugar distante. Um tipo de aproximação se dará em dois meses, quando a a editora Imago lançar no Brasil sua ficção "Quatro Histórias ao Modo Clássico".
Autor de dois romances e três volumes de contos (o último a sair em outubro nos EUA), Brodkey esperou quase 30 anos para se tornar um autor consagrado em seu país, mas apenas três para ser publicamente conhecido.
O motivo: ter anunciado que estava morrendo em um artigo que escreveu para a revista "The New Yorker", em junho de 1993; um fato que seria apenas uma questão de tempo: "Eu tenho Aids e isso me surpreende". Ele morreria em 26 de janeiro de 1996, aos 66 anos.
Em seu texto, narrava uma aventura homossexual -passageira, inconsequente- de um momento extremamente liberal na Nova York dos anos 70.
Contava histórias sobre seus filhos, netos e também literatura. E falava também do amor por sua mulher, a romancista Ellen Schwamm Brodkey.
Mais textos testemunhais, memorialísticos, foram então editados -o caderno Mais! publicou "Morte: Um Rascunho" em 1994.
Assim, o escritor que havia iniciado a carreira em 1957, com os contos de "The First Love and Other Sorrows", e se retirado por mais de 20 anos para escrever "o romance definitivo da América" -"The Runaway Soul", demolido pela crítica-, se tornou, finalmente, conhecido.
"Sua ficção sempre dependeu do modo que ele via o futuro", disse Ellen à Folha, de seu apartamento em Manhattan.
"Quando ele soube que tinha Aids e que morreria em poucos anos, o seu 'senso' de futuro sofreu um choque, porque ele não tinha mais nenhum, e tudo se tornou mais 'concentrado'."
'Minha luz'
Ellen Brodkey fala ainda com dificuldade de seu marido. Inicia um raciocínio e depois retoma o silêncio por temer não ser compreendida. A cada instante deseja que todos saibam que "Harold era uma pessoa muito particular".
Sua carreira foi interrompida em nome da genialidade autoproclamada de Brodkey, considerado logo no início como uma espécie de "Marcel Proust da América", assim que seus primeiros textos chegaram à crítica.
"O que mais o interessava era a consciência humana e a maneira que ela se forma e se desenvolve desde a infância. Como nós crescemos para o mundo em nossas consciências", fala Ellen, explicando as motivações de Brodkey.
"Ele estava interessado no tempo e suas diferentes noções. A idéia de que o mundo repousa na consciência emocional, e tudo que está além disso -a realidade- é imperfeito e instável. Mas isso não é também relativismo, mas uma região que existe apenas no espaço entre o escritor e seu leitor."
No final do último ano, ela recolheu os diários de seu marido, verdadeiros ensaios sobre a idéia do desaparecimento, e os publicou em "This Wild Darkness" (Esta Treva Selvagem).
Brodkey, nos textos, vai denunciando sua fúria não apenas com a situação, mas contra o tempo em que viveu, a infância e as convenções de sua terra.
Ellen, que é quase um personagem -a figura que surge para levá-lo ao jardim em uma manhã, ou ao hospital, com urgência, na madrugada, diz que Brodkey viveu sempre em uma guerra.
"Ele pensava sobre si mesmo como alguém elegante, e o orgulho era uma maneira de expressar isso." Ela explica assim a posição de seu marido, acusado de ter sido um vaidoso e imoral.
"Harold acreditava em seu trabalho e no que ele pretendia fazer. Acreditava que os livros podiam mudar a vida das pessoas e por isso havia se tornado um escritor. Mas tinha também uma extrema responsabilidade sobre o que dizia e escrevia."
Ela prossegue, quase chorando, e ataca o que entende por mundanismo dos homens, editores, escritores e livros.
"Ele preferia não mentir, não jogar os velhos jogos políticos, falar bem de um livro em troca de favores ou fazer um favor em troca de uma boa resenha... Você sabe do que eu estou falando, porque é assim em qualquer parte."
Agora, seu trabalho é recolher o que restou da ficção de seu Harold, que, segundo Ellen, enquanto se confessava em jornais e revistas, continuava obstinadamente a produzir contos.
Ela se surpreende em saber de uma edição brasileira da obra de seu marido. E deseja conhecer quais as histórias que o leitor daqui lerá. Tenta ainda cuidar de Harold Brodkey, o homem que, na dedicatória de "This Wild" escreveu apenas "Para Ellen, minha luz".

Próximo Texto: MORRER
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.