São Paulo, sábado, 8 de março de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Os riscos da especificidade

LAURO CAMPOS

À medida que a sociedade se torna dividida entre uma elite cercada de privilégios e a massa dos excluídos, as leis deixam de ser canais e garantias de ação popular em direção à conquista da liberdade com respeito mútuo para ser um dos ingredientes que selam e "legitimam" o sistema das injustiças que se tornaram normais.
Ali, e quando o próprio acesso ao tribunal se transforma em privilégio de que desfrutam apenas os que podem pagar e esperar as decisões formais, as leis passam a ser uma ameaça que a minoria brande contra a maioria marginalizada: "Aos amigos, pão; aos adversários, a lei", ainda que a lei não passe de espúria medida provisória aprovada por um Legislativo que se destrói a cada ato de subserviência ao déspota.
Em tempo de chuva, todo sinal é de chuva, diz a sabedoria caipira das Minas Gerais. Em época de despotismo esclarecido a que chegamos, como profetizara o mestre Fernando Henrique Cardoso à página 20 de seu livro "Autoritarismo e Democratização", é natural que não só as regras legais, mas a sua interpretação assumam a forma do vaso autoritário em que estão imersas.
Quando o regimento do Senado, em seu artigo 145, determina que as CPIs versem sobre ato ou fato específico, a exegese do texto pode impedir sua aplicação. Foi em nome do respeito à "especificidade" que muitas CPIs foram paralisadas, congeladas em espaços tão acanhados que o processo investigatório murchou a ponto de seus resultados "darem em pizza".
Se os doutos hermeneutas que pretendem "cumprir à risca" o preceito, interpretando-o restritivamente, participassem de uma investigação sobre o ponto, que deve ser algo simples e "específico", ver-se-iam em palpos de aranha e acabariam encerrando suas investigações antes de começá-las: se o ponto é definido como interseção entre duas retas, e a douta Comissão deveria se limitar ao exame do ponto, não poderia sequer iniciar sua investigação, porque ultrapassaria, desde o início, a especificidade do ponto.
Como a reta é uma sequência de pontos, os hermeneutas da "especificidade" do objeto da pesquisa se perderiam num círculo vicioso insolúvel.
Como todo fenômeno é ele próprio e suas circunstâncias, como os desvios, os crimes, as fraudes que as CPIs devem apurar não são seres de laboratório, puros, assépticos, isolados, mas ações humanas complexas, que envolvem necessariamente várias práticas criminosas, cometidas em diversas esferas do poder, dentro e fora do território nacional, com conotações econômicas, políticas, financeiras, jurídicas, o objeto de exame de uma CPI não pode ser considerado específico no sentido que alguns pretendem dar.
É verdade que uma investigação muito abrangente, que colocasse na mesma CPI a dívida pública interna e externa, o narcotráfico, a prostituição juvenil, a impunidade dos crimes contra os trabalhadores rurais, o contrabando, a conivência do Banco Central ou do Senado com as dívidas públicas e os precatórios etc. não poderia apurar todas as tristezas do mundo.
Por outro lado, não se pode cair no erro oposto, qual seja, o de exigir que a CPI se restrinja à "especificidade" do objeto a ser investigado.
O fenômeno específico, individual, é, na realidade, parte da totalidade composta de diversas partes (momentos), que guardam, entre si, relações de mútua dependência, exclusão recíproca e polarização. O específico é ele e suas condições e circunstâncias.
Como se pode examinar e comprovar os crimes praticados por Estados e prefeituras na emissão de letras dos respectivos tesouros -vendidas por corretores no "mercado", composto por bancos e instituições financeiras, que são compradores e vendedores dos títulos públicos, cuja emissão se legitima em sentenças judiciais transitadas em julgado, que deveriam ser fiscalizadas na emissão e na circulação pelo Banco Central e analisadas e referendadas ou não pelo Senado- sem romper os limites da especificidade?
A bancocracia brasileira possui como uma de suas características fundamentais o fato de que o sistema financeiro se coloca num espaço supralegal, reino dos crimes do colarinho branco.
Todas as vezes que uma CPI tenta pisar no espaço do sistema financeiro, é expulsa daquele sagrado território dominado pelo grupo de agiotas. A exigência da "especificidade" do objeto de uma CPI não deveria se transformar num escudo que protege os corruptos e garante sua impunidade.
O absurdo de não permitir que a CPI dos corrompidos, dos anões colloridos, por ser "específica", investigasse e punisse o outro lado, seu complemento necessário, os corruptores -empreiteiras e banqueiros-, não deveria se repetir, sob pena de maior desmoralização do Poder Legislativo.

Texto Anterior: Cada comissão é uma comissão
Próximo Texto: Convite ao debate; Soluções a caminho; PAS; Multiuso; Publicidade perigosa
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.