São Paulo, domingo, 9 de março de 1997
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As infecções culturais

ROBERTO CAMPOS

"Não há tentativa mais frustrante do que a de consertar a sombra de uma vara torta."
José Maria Whitaker
Desde a mais tenra infância sofremos infecções culturais, de origem nobre, que, incrustadas no subconsciente nacional, provocam distorções de comportamento. As duas origens nobres são o Hino Nacional e a oração cotidiana do "Pai Nosso".
Há versos no Hino Nacional que eu, como "idiota da objetividade" (assim me apelidava Nelson Rodrigues), nunca consegui recitar sem uma sensação de ridículo:
"Gigante pela própria natureza."
"Deitado eternamente em berço esplêndido."
No segundo versículo da oração cotidiana do "Pai Nosso", o texto latino, que eu recitava em meus longos anos seminarísticos, era: "Dimitte debita nostra sicut nos dimittimus debitoribus nostris". Todos os brasileiros da minha geração rezavam segundo a tradução literal: "perdoai as nossas dívidas, assim como nós perdoamos aos nossos devedores".
Como o "aggiornamento" da missa e da liturgia, aportuguesando-se os textos latinos, transformou-se o conceito de perdão de dívida financeira em tolerância comportamental. A tradução, obviamente incorreta, passou a ser: "perdoai nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tenha ofendido".
Por que o Hino Nacional e a oração cotidiana, penetrando no subconsciente de milhões de brasileiros, agiram não como vitaminas do progresso e sim como toxinas de comportamento?
É que, se somos "gigantes pela própria natureza", podemos, por assim dizer, dispensar-nos da dura labuta de crescer. Estaríamos condenados à grandeza, ao poder, e talvez à riqueza, em contraste com países menos afortunados que, parcos de território e de recursos naturais, têm de cavar um lugar ao sol sob ameaças à sobrevivência. O verso "deitado eternamente em berço esplêndido" agrava a situação. Não conheço nenhum outro hino nacional que contenha tal elogio à preguiça. O mais clássico e vibrante dos hinos é sem dúvida a "Marselhesa", da Revolução Francesa, que belicosamente associa a glória à disposição de lutar contra a tirania. Outros hinos cantam a liberdade, a devoção à pátria, alguns falam em independência, mas nenhum enfatiza o gigantismo natural e a dormitação esplêndida.
O perdão cotidiano das dívidas, mencionado no "Pai Nosso" tem alguma coisa a ver com nossa "cultura do calote". Transmite a impressão de termos direito a uma frouxidão contratual, associando-se duas idéias negativas: a desnecessidade do planejamento financeiro e a tolerância para com a impontualidade. É escusado dizer que abusamos no passado de ambas as atitudes. A primeira discussão sobre a legitimidade de passarmos um calote na dívida externa foi em 1831, na Câmara dos Deputados do Império. Ao longo do longo governo Vargas, houve quatro moratórias. No governo Sarney, chegamos a inventar uma "moratória soberana", passando a insolvência a ser demonstração de masculinidade. As consequências são, naturalmente, deploráveis. Apesar de ter uma economia robusta e diversificada, o Brasil, na classificação da revista "The Economist", é o quinto maior risco entre os países economicamente significativos, em pior situação que a Turquia, Grécia ou Filipinas. A finança internacional não se alarma com déficits na conta corrente do balanço de pagamentos de 6% a 8% do PIB em alguns países asiáticos, mas acendem-se luzes vermelhas no Brasil e na América Latina quando esse déficit atinge 3%. Os credores têm memória de elefante e não esquecem nossas moratórias.
A síndrome do gigantismo das riquezas naturais resulta em homérica confusão entre "recursos minerais", "reservas minerais" e "riquezas nacionais". "Recursos minerais" no subsolo são apenas cadáveres geológicos, que, quando afloram, podem melhorar ou piorar a paisagem. Somente quando são cubados, e sua extração é factível técnica e economicamente, se tornam "reservas minerais". Só se transformam em "riqueza" quando, por meio da conjugação de investimentos, tecnologia e mercados, começam a gerar um fluxo de rendimentos correntes ou estatisticamente calculáveis num horizonte habitualmente fixado em 30 anos. Imaginar que toda vez que se anuncia a descoberta de um veio de ouro, uma jazida de petróleo ou um depósito mineral há um acréscimo automático da riqueza nacional, independentemente de verificação da relação custo/benefício, é como soltar foguetes porque do feto de uma mulher grávida pode sair um Beethoven... Consciente desse primitivismo cultural, o governo tem atrasado enormemente as privatizações (essenciais para que ele consiga viabilidade fiscal), a fim de se documentar contra acusações de políticos jurássicos ou ideólogos nacionalóides. As precauções tomadas, por exemplo, no caso da Vale do Rio Doce são de um exagero que beira o ridículo. Essa empresa tem longa tradição de Bolsa e milhares de acionistas privados. Por isso, é objeto de avaliação diária e sempre atualizada por centenas de bancos, fundos e corretoras. Sua privatização poderia ter sido efetuada em poucos dias na Bolsa de Valores, pela melhor oferta, em leilão especial que singularizasse o evento da transferência de controle acionário. Reservar-se-ia uma fatia modesta para os funcionários (que já são uma burocracia privilegiada) e uma parcela para vendas pulverizadas, num esforço de democratização de capital. Ao invés disso, discute-se o problema há mais de três anos e contrataram-se dois grandes consórcios para a avaliação do acervo, um com sete e outro com oito bancos e consultorias nacionais e estrangeiras. Foi também subcontratada a maior empresa mundial especializada em reservas minerais, a "Mineral Development Resources Inc.". São assim 16 avaliadores altamente qualificados. Milhões de dólares foram gastos nessas investigações, cuja única utilidade é documentar a "transparência do processo". O resultado não foi surpreendente. As avaliações dos dois consórcios giram em redor de US$ 10 bilhões, ou seja, praticamente a média das cotações da Bolsa de Valores nos últimos três meses. Nem poderia ser de outra forma. As Bolsas refletem com muito mais rapidez e acurácia o valor real do negócio. As estimativas dos funcionários estatais são sempre exageradas porque desejam preservar sua posição e poder burocrático. As dos bancos e consultorias são mais respeitáveis tecnicamente, porque baseadas no "fluxo de caixa", descontado no tempo. Mas essas entidades não estão apostando seu próprio dinheiro. O investidor em Bolsa, que corre diariamente o risco, é o avaliador mais realista que se possa desejar.
O esquema montado pelo BNDES é extremamente sofisticado: o governo receberia pagamento à vista pelas operações atuais, baseadas no fluxo do caixa; ser-lhe-iam emitidas debêntures pelas áreas em que a Vale já iniciou pesquisas ou tem direito de pesquisar; e fará um contrato de risco, com participação de 50%, para as áreas "promissoras".
Resta saber qual o custo dessa laboriosa montagem destinada a acalmar as suspicácias dos "nacionalóides", que disfarçam de patriotismo sua colossal ignorância dos mecanismos de Bolsa. Esse custo é o "custo da espera" ou do "atraso". Se a Vale tivesse sido vendida em Bolsa há três anos, e o dinheiro fosse aplicado na redução da dívida pública interna, o Tesouro teria economizado em custos de rolagem dessa dívida no mínimo dez vezes mais que os dividendos anuais que recebe. Para essa rolagem, oneramos o orçamento com taxas de juros que acabam asfixiando o setor privado e condenando-nos a medíocres taxas de crescimento.
O Brasil descobriu um novo tipo de aritmética: a "aritmética masoquista". Para acalmar senadores nacionalóides, o presidente FHC se comprometeu a não privatizar a Petrossauro durante seu tucanato. Mas, o que é pior, quer amarrar a mão dos sucessores, propondo que seja proibida formalmente em lei a privatização futura. A parcela da União no patrimônio líquido dessa empresa é estimada em R$ 9 bilhões. Aplicado esse montante na redução da dívida, hoje rolada a um custo anual de cerca de 15%, teríamos uma economia de quase R$ 1,35 bilhão, ou seja, mais de 40 vezes os dividendos médios recebidos da empresa nos últimos anos.
Dizia o professor indiano J.K. Mehta que subdesenvolvimento não é falta de recursos. É falta de caráter. Se vivesse no Brasil, saberia que é também fruto da "aritmética masoquista".

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