São Paulo, domingo, 9 de março de 1997
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Ontem

Primos de Garrincha sonham fazer de esporte profissão

MÁRIO MAGALHÃES
ENVIADO ESPECIAL A ÁGUAS BELAS (PE)

"Sassei", grita o atacante, e o companheiro passa para trás. "Etêti", ordena o zagueiro, e o meia lança para frente.
Assim, falando no idioma iatê, os índios da tribo Fulniô atrapalham a vida dos adversários, acostumados a entender os oponentes. "Os brancos ficam perdidos", conta o zagueiro fulniô Everaldo.
A língua ajuda a confundir os rivais, pernas tortas comuníssimas na aldeia lembram, não por acaso, as de Garrincha.
A paixão dos índios pelo futebol, genuinamente brasileira, honra a origem de um dos maiores jogadores da história, Garrincha, cujos bisavós paternos eram fulniôs.
A aldeia, de 4.660 habitantes, reúne cerca de 10% da população de Águas Belas, município do sertão pernambucano, quase agreste, 304 km a sudoeste de Recife.
Mais de um século após a diáspora fulniô que tirou de lá os antepassados de Mané Garrincha, o futebol é um dos principais traços a unir a tribo com a cultura branca.
Há três times locais, Juventude, Guarani e Palmeiras, além de uma equipe feminina. São amadores, embora a carreira profissional seja sonho de todos os atletas.
Primeiro clube a ser fundado, o Guarani (1952) já teve seus dias de glória, mas foi superado pelo Juventude, onde joga Everaldo, filho do pajé, líder espiritual que divide o poder político com o cacique.
Na Olimpíada Indígena de 96, realizada em Goiânia, a seleção fulniô chegou à final do futebol com vitórias de 11 a 0, 8 a 0 e 3 a 1.
Na decisão, perdeu para os xavantes por 2 a 1, mas não esperava sorte melhor. Os xavantes descansaram três dias, enquanto ela jogou a semifinal numa tarde e a final, na manhã seguinte. Os 16 jogadores também atuaram nos torneios de vôlei, natação e atletismo.
'Primos'
Não se sabia na tribo que Garrincha era um fulniô. Depois da revelação de "Estrela Solitária", biografia escrita por Ruy Castro, há reverência pelo "primo".
"Vi pela TV e adorei os dribles que ele dava", diz o ponta-direita Almirair, camisa 7 como Garrincha. A tribo possui pontas, o que quase sumiu no resto do país.
O menino Aritana vende por R$ 0,10 "geladinhos" (picolés) nos jogos na aldeia. "Aqui o futebol é bom porque todo mundo joga como Garrincha."
E quem era Garrincha? "Era um que tinha batata troncha (pernas ruins). Quem me falou dele foi o 'véio' Manezinho, meu avô."
O fulniô João Francisco dos Santos Filho, levado por um médico, morou 12 anos no Rio, atravessando os anos 40. Lá, tornou-se torcedor do Botafogo, o clube que Garrincha defenderia anos depois.
Hoje, aos 71 anos, João é o cacique. "Eu ouvia os jogos dele no rádio sem saber que era fulniô."
Nenhum índio sabe ao certo, nem se importa, quem seriam os parentes diretos de Garrincha na aldeia. "Que pergunta! Somos todos parentes do Garrincha", diz o pajé, Cláudio Pereira Júnior.

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