São Paulo, domingo, 9 de março de 1997
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NBA insiste em domesticar 'peladeiros'

MELCHIADES FILHO
ENVIADO ESPECIAL AOS EUA

Ciente de que cresceu via estratégia global de marketing, a NBA organiza o campeonato mais preocupado com a imagem no planeta.
Baniu drogas, brigas, palavrões. Mas, nessa faxina, está hoje colocando em risco um dos principais motores do esporte, o improviso.
Assim como o futebol um dia foi um esporte da várzea no Brasil (hoje proliferam as escolinhas), o basquete norte-americano de competição tem suas principais raízes nos playgrounds urbanos.
Foram essas quadras que geraram os primeiros mitos da NBA. Entre eles os dois maiores cestinhas dos 50 anos de vida da liga.
O problema é que, se respondeu pelas primeira glórias, o estilo "peladeiro" foi também responsável pela maior crise da NBA.
Nos anos 70, os jogadores talhados no asfalto não levaram apenas criatividade na sua transição do gueto às quadras profissionais.
Drogas e violência passaram a frequentar os ginásios -e a afugentar os torcedores.
Quando assumiu a administração da liga, já nos 80, o advogado David Stern encontrou um torneio falido, sem público e sem mídia.
Resolveu, então, lançar uma moralização financeira e pessoal.
"O campeonato precisava mesmo de um choque", disse à Folha o ex-técnico Red Holzman, bicampeão pelo New York nos anos 70.
Droga passou a significar banimento. Troca de socos em quadra, suspensão. Palavrão, multa.
No vácuo, passaram a emoldurar o repertório dos basqueteiros expressões "civilizadas", como jogo de conjunto e disciplina tática.
Ajudou muito a NBA a explosão de Magic Johnson, Larry Bird e Michael Jordan. No apogeu de sua carreira, os três ofuscaram seus talentos individuais em nome do esquema tático, de um jogo coletivo.
A estratégia deu certo. A liga virou mania global, as equipes tiveram lucros multiplicados e os jogadores ficaram milionários.
Mas, nesse expurgo controlado, a NBA pode ter maculado a alma.
Crucificação
A liga continua se servindo do basquete de rua. Em suas campanhas de marketing, por exemplo, sempre privilegia as enterradas, o lance mais importante e mais típico do basquete de playground.
Mas toda vez que o torneio apresenta problemas, o diagnóstico é automático: culpa dos "peladeiros", dos improvisadores.
Esse discurso valeu na "lavação de roupa suja" do "Dream Team 2", seleção que representou os EUA no Mundial de 94 e que foi bastante criticada pelo "personalismo" de seus integrantes.
Repetiu-se na escolha de Grant Hill, do Detroit, notório bom-moço, como o atleta em cujas costas deve repousar o futuro da liga.
E bastou a temporada 96-97 sinalizar uma queda do nível técnico (pontaria despencou, os erros aumentaram) para o dedo da NBA voltou a apontar nessa direção.
A nova geração "peladeira" -revoltados, miseráveis na infância, bocas-sujas, talentosos- foi recebida friamente pela liga.
Por ser o mais desbocado dessa legião, e por criticar a ortodoxia da NBA, o armador Allen Iverson, primeira seleção entre os universitários recrutados em 96, transformou-se no alvo número um.
Seu drible característico, em que ele hesita um pouco no meio do bate-bola para desequilibrar o marcador, começou a ser coibido -sob argumento de condução.
"É o movimento que venho fazendo toda a minha vida. É o que me trouxe aqui. Vou provar que minha mão está sempre no lado da bola, nunca sob ela."
Mas a liga não recuou. Pelo contrário. Retrucou pedindo ao armador que encurtasse os calções e abandonasse as tornozeleiras.
"Você olha na liga e tem gente com calções muito mais longos", lamentou Iverson à Folha.
Nas estatísticas, ele é o terceiro maior produtor ofensivo (pontos feitos + pontos derivados de seus passes) de toda a NBA. Fica atrás apenas de Jordan (Chicago) e Latrell Sprewell (Golden State).
Mesmo assim, aparece somente em quarto lugar na lista dos mais cotados para o prêmio de melhor calouro desta temporada.
O preferido do "establishment" da NBA é Kerry Kitles, do New Jersey, o mais tímido da turma.

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