São Paulo, domingo, 9 de março de 1997
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Pessimismo escandaloso

ALAIN TOURAINE
ESPECIAL PARA A FOLHA, DE PARIS

Os ataques movidos contra a mídia por inúmeros intelectuais misturam observações banais a preconceitos tradicionais e impedem entabular um debate sério. Pois, como é óbvio, as críticas a fazer à mídia são numerosas e categóricas, mas não impedem que a mesma mídia seja um "locus" indispensável e cada vez mais importante da vida pública. Devia-se combater a imprensa no século 19 por ela ser muitas vezes corrupta ou -o que redunda no mesmo- estar a serviço dos interesses dominantes? E lá isso deteve Zola, que publicou num jornal seu "Eu Acuso!"? Deve-se condenar os partidos políticos por eles se transformarem frequentemente em classe política e não representarem mais os anseios do povo?
A atualidade francesa dá a tais indagações uma resposta política concreta. O governo deste país quer fazer passar uma lei contra a imigração clandestina que obrigaria os cidadãos a se portarem como delatores e que acabaria por fichar aqueles que deram guarida a estrangeiros em situação irregular. O protesto, que se amplifica rapidamente contra este projeto de lei, foi lançado por cineastas e contou com o apoio de vários jornalistas e da cobertura abrangente da imprensa, inclusive a televisão.
Eu mesmo fui convidado por uma cadeia de televisão para explicar as razões por que assinara um texto de protesto. Este exemplo concreto demonstra como são superficiais as condenações da mídia que passam arbitrariamente de uma crítica justificada das deformações e dos limites da imprensa e sobretudo da televisão à afirmação que a mídia está automaticamente a serviço das forças dominantes, o que não corresponde à realidade. Chego a me perguntar como podemos nos dizer democratas se pensamos que o dinheiro e o poder podem reduzir ao silêncio ou manipular a opinião pública.
Afastemo-nos portanto deste pessimismo, que de tão excessivo torna-se escandaloso, mas não nos contentemos também em criticar o que se denominou a justo título a descontextualização dos informes, a busca do efeito afetivo, a recusa da análise, que com efeito são muitas vezes armas a serviço de uma TV conservadora -um mal porém de que padecem muito menos o rádio e a imprensa escrita.
Sabemos há muito que a mídia não é capaz de modificar em profundidade as atitudes ou a opinião e que a credibilidade de uma mídia cai por terra tão logo o público duvide da sua independência. Mas o que se deve acrescentar agora é o efeito devastador da ruptura entre os governos e a opinião pública. Não sofremos de um excesso, porém de uma falta de comunicação, pois esta não consiste em emitir mensagens, mas em fazer com que elas sejam recebidas, coisa que só pode ser feita em termos políticos se o público tiver consciência de ser parte integrante, de forma direta ou pelos seus representantes, do processo político. Em vez de nos indagar como a mídia influi em nossa situação, examinemos antes como a situação -isto é, a crise de comunicação política- age sobre a mídia.
Esta, como os próprios partidos políticos, é seduzida por duas tentações igualmente perigosas. A primeira, a mais letal, é se transformar em porta-voz do governo ou, pior ainda, do que se chama de mercado ou globalização. O público, a partir de então, sente-se agredido e retira a sua confiança. A segunda é inversa: consiste em reforçar a resistência da opinião pública ao poder, em geral ao encerrá-lo num universo não-político, no qual a meteorologia, o futebol, as reportagens sobre as estrelas da atualidade, o exotismo e o recurso à emoção criam uma televisão ou uma imprensa de empatia, isto é, que acentua a separação entre vida privada e vida pública.
A terceira consiste para a imprensa em transformar-se num poder independente a serviço dos próprios interesses, que podem ser os interesses financeiros dos proprietários dos órgãos de imprensa ou aqueles, muito mais corporativos ou ideológicos, dos próprios jornalistas. Neste caso se dá a mais completa ruptura da comunicação política, já que ocorre em duas frentes: tanto com o topo quanto com a base da sociedade.
Ante a tais perigos, podemos definir a via que pode seguir a imprensa -escrita ou falada- para estabelecer a comunicação política e, como resultado, desempenhar um papel democratizante? É evidentemente esta pergunta que requer a resposta mais precisa, pois não basta dizer que a imprensa deve dar prova de responsabilidade, de honestidade e de sintonia com o interesse público. Resposta que corre mesmo o risco de ser um modo hipócrita de sucumbir à terceira das tentações indicadas. Não creio que a imprensa possa ser inteiramente objetiva, pois ela contribui a construir a realidade, embora não possa fazê-lo como bem entenda, sob pena de perder o seu público.
Minha resposta é portanto que a imprensa, para estar a serviço da liberdade, deve evidenciar o máximo possível o sentido geral das experiências particulares. É assim que ela restabelece o equilíbrio com o que se chama de informação, que emana por definição dos cumes políticos ou econômicos da sociedade. A imprensa não deve se ligar a partidos políticos, mas antes ser um órgão de expressão da sociedade civil, dar ouvidos a indivíduos, grupos e coletividades que se esforçam por transformar as suas condições de vida. Observo que esta é a concepção que serve de base ao sucesso de muitos noticiários.
Ao lado de publicações especializadas na informação das elites, como "The Economist", o sucesso das boas revistas de grande público, como o são na Europa o "Der Spiegel" ou o "Nouvel Observateur", decorre do fato de elas se ocuparem cada vez mais com os problemas da sociedade. É dessa forma que o "Nouvel Observateur", na França, superou em vendas o "L'Express", pois seu concorrente permaneceu mais fiel à concepção tradicional da "Time", que informa de cima para baixo, e não de baixo para cima. Os problemas da violência, da juventude, da imigração, da bioética têm em comum o fato de nos porem diretamente ante a escolhas, decisões a tomar, ao menos em termos hipotéticos.
A comunicação política não será restabelecida pela habilidade de conselheiros em comunicação ou em "political marketing"; ela virá de baixo, das "gentes" que marcam hoje os meios de exprimir ou mesmo de formular o significado social e político das experiências e dos problemas que vivem. E eu não proporia esta idéia se não observasse que a mídia de todo tipo logra melhor êxito, ou seja, é mais lida ou mais escutada quando assume melhor este papel. Em vez de lançar o seu desprezo sobre a mídia, os intelectuais deviam contribuir para demarcar o papel de expressão dos anseios, das iras e esperanças da maioria, que devem e podem ser aqueles da televisão, do rádio e da imprensa escrita.

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