São Paulo, domingo, 9 de março de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A mídia é a notícia

JOSIAS DE SOUZA
SECRETÁRIO DE REDAÇÃO

Machado de Assis escreveu em 23 de outubro de 1859 uma crônica sobre a imprensa. Chama-se "A Reforma pelo Jornal". Começa assim: "Houve uma coisa que fez tremer as aristocracias, mais do que os movimentos populares; foi o jornal".
A crônica de Machado, à época um jornalista com escassos 20 anos, festeja a ampliação dos domínios do verbo: "A imprensa, que encarnava a idéia no livro, (...) sentia-se ainda assim presa por um obstáculo qualquer; (...) abriu pois uma represa que a impedia, e lançou-se (...) ao novo leito aberto: o pergaminho será a Atlântida submergida".
Passados 137 anos, a palavra abriu picadas que não cabiam nem mesmo na imaginação de um Machado de Assis. E, ao cruzar novas fronteiras, levou consigo a reportagem, a informação. O texto noticioso rompeu a relação de dependência que mantinha com o papel. Não bastassem o rádio e a televisão, a notícia move-se hoje por nuvens de elétrons, na Internet.
Confrontada com tantos meios de propagação, a imprensa virou, ela própria, notícia. Os veículos de comunicação vivem uma quadra nebulosa, sacudidos por uma atmosfera que mistura contestação e hiperconcorrência.
Habituada a nutrir-se de crises alheias, a imprensa experimenta a sua própria crise. Se o autor de "Dom Casmurro" pudesse reescrever a crônica de 1859, talvez modificasse o título. Em vez de "A Reforma pelo Jornal", anotaria: "A Reforma do Jornal". Ou, melhor ainda, "A Reforma da Mídia".
Em sua edição de hoje, o Mais! lança um facho de luz sobre um debate restrito, basicamente, ao ambiente acadêmico e ao recinto das redações.
Eis algumas perguntas que embalam a discussão: Qual o verdadeiro papel da mídia? Os jornais sobreviverão à Internet? Onde começa o direito do cidadão à privacidade? Onde termina o dever do jornalista de informar?
Há, nas páginas seguintes, uma série de entrevistas e artigos de intelectuais, jornalistas e autoridades. Ouviram-se sobretudo os mais críticos, de modo a situar a discussão em um ambiente de pouca ou nenhuma condescendência com a mídia.
O presidente Fernando Henrique Cardoso, por exemplo, acha que os jornais "apostam na catástrofe". Já a deputada Marta Suplicy (PT-SP) aponta o "oficialismo" como o "maior pecado da imprensa". Acha que os meios de comunicação no Brasil não têm olhos senão para Brasília.
Gustavo Franco, diretor da Área Externa do Banco Central, enxerga um viés sensacionalista da mídia, traduzido, no noticiário econômico, pelo uso de expressões como "rombo", "buraco", "enxurrada" e "explosões".
Em texto ácido, ainda inédito no Brasil, o jornalista americano Adam Gopnik traça um perfil negativo da imprensa americana: "Embora a mídia tenha, nos últimos 20 anos, reclamado o que equivale a direitos de promotor e juiz -o direito de devassar vidas privadas, desencavar histórias antigas, escarnecer, julgar etc.-, um balanço de sua atuação revela que ela tem tido muito poucos sucessos inequívocos quando comparados à quantidade de infelicidade humana que causou".
O linguista americano Noam Chomsky diz que a imprensa de seu país opera sob os efeitos do sistema econômico. Segundo o seu raciocínio, os meios de comunicação não passam de "empresas enormes, que integram conglomerados ainda maiores". Tais conglomerados são, por sua vez, "integrados com o nexo Estado-privado que domina a vida econômica e política".
Os desafios da concorrência intimam as organizações jornalísticas a organizarem-se como empresas, submetidas a exigências de eficiência. Opta-se pela profissionalização, em contraposição ao modelo encarnado por William Randolph Hearst, o magnata da imprensa americana, celebrizado por Orson Welles em "Cidadão Kane". Dono de um império com sede na Inglaterra, Rupert Murdoch talvez seja o último "Kane" da imprensa mundial.
Entre os intelectuais, o sociólogo francês Alain Touraine foi o único a temperar as críticas com um lembrete sobre a importância da mídia como " 'locus' indispensável e cada vez mais importante da vida pública".
Ouviram-se também leitores especializados, pessoas que têm o hábito de ler dois, três e até quatro jornais. A maioria (61%) acha que o principal problema dos jornais é o posicionamento ideológico. E quase um terço (28%) gostaria de vê-los submetidos a algum tipo de controle.
Já na sua época, Machado de Assis mencionava os riscos de supressão da liberdade de informar. Algo de que desdenhava: "Os pergaminhos já não são asas de Ícaro". Na mesma crônica de 1859, Machado anteviu dificuldades para a imprensa. Chamou-as de "fases a atravessar", antes de arrematar, otimista: "Cumpre vencer o caminho a todo o custo; no fim há sempre uma tenda para descansar, e uma relva para dormir". Porém, a julgar pelo debate exposto hoje no Mais!, a mídia está mais próxima da guerra que do repouso.

Texto Anterior: Coluna Joyce Pascowitch
Próximo Texto: O QUE VOCÊ VAI LER
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.