São Paulo, domingo, 9 de março de 1997
Texto Anterior | Índice

Estados Unidos mantêm apoio cego ao México

JORGE CASTAÑEDA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Apesar de a administração Clinton ter certificado a "cooperação total" do México no combate às drogas, os escândalos e as reviravoltas dos últimos dias vêm confirmar uma tendência histórica. Não importa quantas revelações são feitas ou quantas provas da corrupção e da ausência do estado de direito no México vêm à tona, Washington prefere atuar como sustentáculo do regime do PRI (partido governista) a correr o risco de um colapso ou transição.
A tradicional política dos EUA de estabilidade a qualquer preço no México se mantém firme e forte; não importa que o sistema político vigente seja garantia de instabilidade crescente, ou que o custo de tudo isso esteja crescendo em progressão geométrica.
Imagine uma família que tem dívidas grandes demais com a hipoteca da casa, os carros, os cartões de crédito e as compras a prazo em lojas de departamentos. Imagine, então, que, por uma série de razões em grande medida fortuitas, ela consiga refinanciar cerca de 2,5% de sua dívida total. Imagine, finalmente, que, uma vez obtido o refinanciamento, o bairro inteiro compareça em peso para ovacionar a família afundada em dívidas -não porque ela tenha aumentado sua renda, diminuído sua dívida ou mesmo refinanciado a dívida completamente, mas só por haver conseguido refinanciar uma parte entre 35 de suas obrigações.
É mais ou menos isso que significa a aclamação com que foi recebido o recente pagamento, pelo México, da parcela final do pacote de socorro de 1995. A única coisa que o governo do presidente Ernesto Zedillo fez para merecer aplausos de Bill Clinton e da mídia norte-americana foi ir buscar cerca de US$ 5 bilhões em empréstimos nos mercados europeus, no final do ano passado.
Conseguidos os empréstimos, o governo os guardou numa conta especial, não tabulada nas cifras da reserva do Banco Central, e, subsequentemente, usou os fundos para acabar de pagar empréstimos concedidos no início de 1995, para impedir o colapso financeiro do país.
É verdade que, com esse refinanciamento, o México se poupa de pagar alguns juros, e Clinton se poupa de algumas críticas políticas. Mas o refinanciamento em questão não deve ser visto como reflexo de uma suposta retomada econômica, nem como indício de perspectivas futuras promissoras.
A primeira envolve a dívida externa total -pública e privada, de curto e de longo prazo, junto a todos os credores. Ela pode ser estimada em um pouco mais de US$ 180 bilhões, ou um pouquinho menos, se não incluirmos os títulos em pesos mexicanos que se encontram em mãos estrangeiras. Isso representa uma porcentagem mais alta do PIB (cerca de 60%, em dólares atuais) do que em 1982, quando a incapacidade mexicana de pagar sua dívida inaugurou a crise latino-americana da dívida.
Os juros anuais sobre essa dívida excedem os US$ 15 milhões, ou seja, o dobro do montante dos investimentos estrangeiros diretos anuais. Assim que o México começar a apresentar um déficit comercial, suas contas externas voltarão a ser inadministráveis.
Isso nos leva à segunda fonte de preocupação. Não há dúvida de que o setor exportador vem apresentando um desempenho impressionante: as exportações vêm crescendo em mais de 20% ao ano. Embora as importações venham crescendo mais rapidamente do que as exportações, o país hoje ostenta uma base competitiva de exportações que nunca antes teve. As vendas totais ao exterior totalizaram quase US$ 100 bilhões no ano passado -quase um terço do PIB.
Mas a economia nacional, completamente desconectada desse encrave em crescimento, continua estagnada. No ano passado, a demanda interna cresceu apenas 2% em relação a 1995, que foi o pior ano econômico no último meio século no México; esse crescimento pode ser explicado pura e simplesmente pelo crescimento populacional. Pior ainda, a ligação entre a economia interna e a de exportação é menor do que nunca: as fábricas "maquiadoras" -que ficam na fronteira com os EUA e se limitam a montar produtos com componentes vindos de fora- representam uma parcela cada vez maior das exportações, e boa parte da indústria de exportação não "maquiadora" começa a assemelhar-se a esta: com conteúdo majoritário ou inteiramente importado e produção total exportada.
Como o setor de exportação é produtivo, competitivo e recente, emprega muito poucos mexicanos, e, como ele não tem fornecedores no restante da economia nacional, os vínculos retroativos formados são poucos. E, como a economia interna é menos eficiente, mas ainda constitui dois terços da total, ela emprega mais de 80% da população empregada. Assim, o desempenho impressionante das exportações, que influi tão fortemente sobre as estatísticas agregadas, exerce pouco impacto sobre a vida da maioria dos mexicanos.
Assim, não surpreende que números imensos de mexicanos considerem que se encontram em pior situação do que jamais estiveram -e com razão. Por motivos que às vezes desafiam o poder da imaginação, a mídia e o establishment norte-americanos continuam a enxergar possibilidades alentadoras por trás de cada desastre. No entanto, uma sondagem atrás de outra, no México, mostra que os mexicanos têm um sentimento oposto: acreditam que pouca coisa está melhorando no país.
Pelo menos dois fatores ilustram e justificam essa convicção. O primeiro envolve o colapso da lei e da ordem em muitas das maiores cidades mexicanas, e sobretudo na capital. Na maior cidade do mundo, sequestros, assaltos a bancos, roubos de postos de atendimento bancário automático e assaltos aos passageiros de táxis já viraram rotina. Essa situação esdrúxula -afinal, há dez anos, apenas, a Cidade do México ainda era um bom lugar para se viver ou para onde viajar- se explica por dois fatores: a crise econômica e a desintegração do sistema policial e judiciário mexicano.
As Forças Armadas do país não foram encarregadas da segurança na capital pela primeira vez em anos só para que tivessem algo a fazer. Por mais perigosa e repugnante que possa parecer a opção, não há alternativa, literalmente.
O segundo fator de pessimismo é a violência política. Não existe virtualmente probabilidade nenhuma de que os vários grupos guerrilheiros que atuam no país algum dia representem ameaça militar séria ao governo ou à estabilidade. Mas isso não quer dizer que não existam, ou que sejam incapazes de infligir danos sérios ao Exército, à imagem do regime no exterior ou aos mercados incautos.
A ameaça zapatista em Chiapas foi neutralizada, em grande medida, embora as ramificações políticas e culturais do conflito nas comunidades indígenas continuem a reverberar na sociedade mexicana. Mas o Exército Popular Revolucionário (EPR) é algo muito mais sério.
Embora ainda restem dúvidas e desconfianças quanto a seus verdadeiros fins e origens, há razões para crer que, quem quer que esteja se beneficiando de seu surgimento e apoiando suas atividades, é um grupo guerrilheiro real.
O EPR tem dinheiro (obtido, provavelmente, nos sequestros amplamente divulgados de 1994), armas -compradas dos cartéis de drogas- e pessoas capazes e dispostas a usá-las.
Fontes do governo informam que nos últimos meses mais de 50 integrantes das Forças Armadas foram executados pelo EPR. Por mais que a imprensa e o governo se esforcem para restringir notícias sobre o EPR, é provável que, na campanha eleitoral vindoura, o grupo tente criar obstáculos à votação e ao processo eleitoral.
A violência política na zona rural e a ruptura da lei e da ordem nas cidades não são decorrência direta do esgotamento do tradicional sistema político unipartidário mexicano. Mas a ausência de um sistema político funcional provavelmente faz com que seja impossível lidar com essas questões.
E essa talvez seja a maior falha do presidente Zedillo até agora, numa administração que, de qualquer modo, tem poucos êxitos dos quais se gabar. As esperanças eram grandes em duas frentes: a reforma do Judiciário e a reforma eleitoral. Ambas fracassaram.
Os três maiores partidos políticos do país passaram mais de um ano e meio negociando a nova legislação eleitoral. Finalmente, no verão passado, chegaram a um acordo sobre mudanças que, ao mesmo tempo que deixariam intacto o sistema partidário atual e ainda garantiriam a probabilidade de o PRI manter a maioria no Congresso, implicavam em modificações nos procedimentos de voto. Mas a principal razão pela qual a reforma foi elogiada se deve ao fato de ter sido aprovada por consenso -coisa rara no México. No entanto, quando chegou a hora de votar detalhes da legislação que implementariam as emendas constitucionais mais abstratas, o consenso acabou.
O PRI fez questão de virtualmente impossibilitar o surgimento de coalizões políticas e assegurar que as novas leis garantissem um financiamento maciço para ele mesmo. A oposição não concordou e chegou até a devolver sua parte dos enormes subsídios aprovados no Congresso pela insistência do PRI, que vai receber mais de US$ 100 milhões em dinheiro do contribuinte para as eleições de meados deste ano. Em consequência disso, a desconfiança que permeia as relações entre a oposição e o PRI provavelmente estão maiores hoje do que em qualquer momento desde 1988.
A intolerância oficial e a intimidação dos críticos e dissidentes pelo governo também voltaram ao nível existente antes de Zedillo.
Mas talvez seja na questão da reforma judiciária que Zedillo desiludiu mais o país. O constrangedor fiasco em torno do caso Raúl Salinas de Gortari deixou os mexicanos ainda mais cínicos, e está levando um número cada vez maior de cidadãos a perder as esperanças no futuro do país.
Primeiro o irmão do ex-presidente foi preso sob acusação de ser o mandante do assassinato do secretário-geral do PRI José Francisco Ruiz Massieu (seu ex-cunhado). Depois vieram à tona revelações chocantes sobre falsas identidades e contas bancárias contendo centenas de milhões de dólares. Finalmente, o suposto esqueleto do conspirador maior no assassinato foi desenterrado no jardim da casa de Raúl, aparentemente comprovando a culpa deste.
Agora, revelou-se que os ossos encontrados nada têm a ver com o assassinato de Ruiz Massieu, que as testemunhas que depuseram sobre seu envolvimento haviam sido subornadas pela polícia e que o dinheiro que Raúl depositou na Suíça e em outros lugares havia sido "emprestado" a ele pelos magnatas a quem o presidente Salinas vendeu estatais. O promotor federal que montou o processo contra Raúl está prestes a ser preso por haver falsificado as acusações; no entanto, o irmão do ex-presidente certamente continuará preso até a eleição deste ano, pois sua libertação seria fatal para as perspectivas eleitorais do PRI, que já estão más.
Não se sabe porque a administração Clinton continua enxergando tudo isso sob a melhor ótica possível. Faz pouco sentido os americanos continuarem fazendo de conta que nada está errado no México ou que as coisas por ali estejam melhorando. Por mais que Clinton diga que estão, ou por mais que Zedillo se irrite quando seus críticos expressam suas opiniões, a situação do México não está mudando para melhor.

Tradução de Clara Allain

Texto Anterior: Lançado site da rainha Elizabeth 2ª na Internet
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.