São Paulo, domingo, 9 de março de 1997
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Quando os maridos saem do armário

GABRIELLA MICHELOTTI

Homens explicam por que trocaram mulher e filhos pela vida homossexual
"Meu casamento foi ficando insustentável. Meu sogro começou a perceber que eu era viado, eu não aguentava mais esconder. Um dia, saí para trabalhar e nunca mais voltei"
(Jorge Santos, gerente de vendas)
"Eu me casei aos 23 anos. Quase não tinha experiência nem de um lado nem de outro, mas, desde pequeno, sentia que minha linguagem era diferente"
(Fernando Tombolato, engenheiro agrônomo)
"Acho que é importante orientar os outros gays para que eles não dêem esse mau passo".
(Luis Mott, antropólogo. Na foto, com o namorado, Marcelo)
"Pode ser que no futuro eu volte a me interessar por mulheres. Mas, depois de Alice, nunca mais me relacionei com alguém do sexo feminino, porque foi uma grande decepção"
(Elias Castro, estudante)
"Os homens ficam terrivelmente chatos quando são bons maridos."
Oscar Wilde, escritor irlandês homossexual (1854-1900)
"Sendo gay, conheci pessoas incríveis, que eu nunca teria encontrado se tivesse me casado."
Edmund White, 57, escritor norte-americano
"Mulher com mulher não me choca. Não convidaria um casal de homens para ir à minha casa."
Wigberto Tartuce, deputado (PPB-DF)
POR GABRIELA MICHELOTTI
FOTOS ANA OTTONI
Histórias de homens que abandonam a família por outra mulher já não causam mais espanto -principalmente se a "outra" for loira, muito mais jovem e sempre andar com blusinhas que deixam a barriga, malhada em academias, à mostra. Mas o que leva um homem a trocar mulher e filhos por outro homem -mesmo que ele seja mais velho, careca e barrigudo?
"Comecei aos poucos a perder o interesse sexual pela minha mulher. Um dia, conheci um médico na empresa em que trabalhava, ficamos amigos e saíamos muito para beber. Depois de um tempo, descobri que estava apaixonado por ele", conta Jorge Santos, gerente de uma empresa, cujo nome ele não revela.
O depoimento de Jorge -que, como outros três gays, teve coragem de mostrar a cara nesta reportagem- ajuda a entender como se dá essa virada, tão radical, que implica quase sempre perda de emprego e rompimento com os próprios pais, irmãos e filhos.
No caso de Jorge, que estava casado havia 12 anos e tinha um filho, a ruptura foi brutal. "Meu casamento foi ficando insustentável. Meu sogro começou a perceber que eu era viado, eu não aguentava mais esconder. Mas tinha medo de contar para a minha mulher porque achava que ela nunca entenderia, que seria a morte para ela. Um dia, saí para trabalhar e nunca mais voltei."
Jorge largou o emprego em São Paulo, mudou-se para Salvador e nunca mais viu a família. A mulher ficou sabendo do que acontecera por uma amiga em comum. "No começo, ela não queria acreditar de jeito nenhum, achava que era fofoca", conta.
À mãe e aos irmãos, ele mesmo contou, "mas aos poucos". "Hoje sofro muito com isso, gostava muito do meu filho e da minha mulher. Procuro não pensar mais para não sofrer", diz, com lágrimas nos olhos.
O namoro com o médico, que não queria assumir sua homossexualidade, não deu certo, e Jorge começou a frequentar bares e saunas gays. "Pegava meninos na rua, tornei-me promíscuo", lembra-se.
Agora, Jorge continua na Bahia, não tem nenhum namorado fixo, mas deixou de frequentar os "cinemas de pegação".
Salvação pelo casamento
Quando um homem faz essa mudança, ele "vira" gay ou ele sempre foi homossexual, mas não tinha coragem de assumir?
Nem uma coisa, nem outra. As histórias dos ex-chefes de família mostram que eles já sentiam atração por outros homens, mas não sabiam até que ponto isso significava ser homossexual.
"Quando era pequeno, sempre me sentia atraído por meninos. Fiz aquelas brincadeiras que todo mundo faz, tipo passar a mão na bunda, mas nunca passou pela minha cabeça me apaixonar por outro homem. Queria me casar e ter filhos", afirma Jorge.
Aos 38 anos, ele faz parte de uma geração para a qual não existia a possibilidade de uma vida feliz como gay. "Minha família era muito religiosa, e eu também. Achava que o desejo por homens era puramente sexual e que acabaria quando eu me casasse."
O sonho do casamento -consenso para a maioria das mulheres- é comum também entre os "novos gays". Para eles, significa uma chance de "se salvar" da vida marginal do homossexualismo.
Sem convicção suficiente para assumir a atração por outros homens, eles acreditam que vão "superar as dúvidas", "curar-se" ou "tomar o caminho certo", depois de pisar no altar ou de assinar uma certidão.
O engenheiro agrônomo Fernando Tombolato, 40, queria se casar, apesar de sua ambivalência sexual. "Eu me casei aos 23 anos. Quase não tinha experiência nem de um lado nem de outro, mas, desde pequeno, sentia que minha linguagem era diferente. Não gostava de futebol e daquelas brincadeiras de moleque", conta.
Fernando casou-se com a sua primeira namorada, uma estudante de psicologia. Foi tudo rápido: o namoro durou apenas oito meses e, já na lua-de-mel, a mulher engravidou.
Ele diz que não conseguiu assimilar bem o fato. "Ela teve um aborto natural, mas não ajudou a melhorar a minha crise. Com seis meses de casado, eu já estava arrependido."
O engenheiro diz que não tinha vontade de ter relações sexuais com a mulher, mas não sentia atração por mais ninguém. Achava que tinha apenas escolhido a namorada errada.
Mesmo assim, não se separou. No quarto ano de casamento, morando na França, onde fazia um estágio, Fernando se envolveu com um vizinho, também brasileiro. Não contou nada para a mulher e vivia em dúvida sobre a sua própria sexualidade.
No ano seguinte, em 1974, voltaram ao Brasil e Fernando acreditava que salvaria o casamento. "Mas as coisas só pioraram. Passamos mais um ano juntos e finalmente nos separamos".
Desquitado, o engenheiro começou a ter casos com homens -sempre namoros longos. Ficou três anos com um e agora está há sete anos morando com outro.
A ex-mulher, Fernando só viu uma vez, por acaso. Após a separação, ele contou a verdade para ela, que, apesar de psicóloga, reagiu mal.
"Às vezes ela gritava. Acho que pelo menos profissionalmente eu fui um prato cheio para ela", afirma Fernando.
Paixões na universidade
A revolta das mulheres abandonadas é outro ponto comum nessas histórias. Quando o pós-graduando em Letras Elias Ribeiro de Castro, 31, decidiu separar-se da mulher com quem vivia, ela "ficou louca".
"Ela não queria terminar. Um dia quebrou tudo no apartamento em que morávamos no Crusp (alojamento de estudantes da USP)", conta.
Elias também tinha pouca experiência com namorados ou namoradas quando conheceu a norte-americana Alice (não quis dar o sobrenome). "Ainda não havia namorado. Só tinha transado com um homem uma vez. Alice foi minha segunda namorada, mas a primeira mulher com quem eu transei", conta.
"Conheci Alice durante um encontro de estudantes. Ela me deu bola, e eu me apaixonei. Morria de ciúmes dela e queria ter filhos."
Mas a paixão acabou um ano depois, quando Elias conheceu um estudante de direito. "Eu já tinha sentido atração por alguns rapazes, mas foi a primeira vez que me apaixonei por um homem."
A paixão pelo futuro advogado não durou muito. "Depois, eu e Alice tentamos voltar várias vezes, porque ela queria continuar. Mas não deu certo. Eu tinha perdido o desejo por ela."
Ao contrário de Jorge e Fernando, que dizem ser homossexuais, Elias acha "que está gay". "Pode ser que no futuro eu volte a me interessar por mulheres. Mas, depois de Alice, nunca mais me relacionei com alguém do sexo feminino, porque foi uma grande decepção."
Agora, o estudante tem um namoro fixo com um ex-aluno da faculdade de engenharia da USP. "Nós estamos montando um novo apartamento que compramos juntos", conta Elias.
Mau passo
Para o militante Luis Mott, professor de antropologia da Universidade Federal da Bahia, os "gays se casam por falta de modelos alternativos".
Para ele, o sujeito que pretende tornar-se um "cidadão pleno" e ter uma vida amorosa estável acredita que só poderá atingir esses objetivos se for casado com uma mulher. No Brasil de hoje, onde o projeto de regulamentação dos casamentos homossexuais está emperrado no Congresso Nacional, é fácil entender esse ponto-de-vista.
Luis mesmo foi casado e tem duas filhas -hoje com 22 e 24 anos. "Eu queria ter uma vida doméstica, ter filhos. Achava que isso só seria possível casando-me com uma mulher", diz.
Em 1972, ele se apaixonou por uma professora universitária. Teve coragem de contar a ela que já havia tido experiências homossexuais, mas disse que considerava "essa fase superada".
O casamento, em Campinas (interior de SP), durou cinco anos. "Minhas relações sexuais eram bem-sucedidas, eu era fiel. Mas me dei conta de que era gay e que isto não estava errado, que a sociedade tinha de aceitar o homoerotismo".
Como nos outros casos, a separação foi traumática. A família dele e a da sua mulher, que não tinham muito contato, se uniram para evitar a "catástrofe". "Minha mulher não queria se separar. Até amigos meus, professores da Unicamp, diziam que aquilo era uma loucura, me aconselhavam a continuar casado. Uma colega chegou a dizer que eu deveria manter as aparências."
A relação com as filhas entrou em crise. "Fui aconselhado por uma psicóloga a não falar sobre a minha homossexualidade com elas, o que foi um erro. Elas se sentiram frustradas e revoltadas."
Como Jorge, ele decidiu mudar-se para Salvador, na sua opinião, uma cidade mais aberta, menos conservadora que Campinas. Na Bahia, passou a estudar o homossexualismo, foi morar com um namorado e tornou-se militante.
As filhas, agora adultas, ficaram amigas dele. "Acho que é importante orientar os outros gays para que eles não dêem esse mau passo". "Mau passo", no caso, é casar-se com uma mulher.

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