São Paulo, domingo, 9 de março de 1997
Próximo Texto | Índice

Jô vira a "vaca sagrada" das elites

FERNANDO DE BARROS E SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Jô Soares se transformou num problema para quem pretende se ocupar dele com alguma disposição crítica. Nos últimos anos, não há nenhum programa da TV brasileira ou qualquer personagem da mídia que tenha sido tão incensado pela crítica, pelo público e por seus pares.
A situação chegou a um ponto em que qualquer comentário menos favorável, qualquer objeção ao "Jô Onze e Meia", é tomada imediatamente como idiossincrasia, como oportunismo de quem estaria usando a fama alheia para tirar uma lasca em proveito próprio.
Ninguém nega que Jô Soares tenha um enorme talento. Ele sabe disso, mas, às vezes, perde o senso do ridículo. Por exemplo, quando faz questão de alardear que fala sete (ou serão oito?) idiomas.
Já faz algum tempo que existe uma afetação em torno de Jô Soares, que é perniciosa para todos. A situação de seu programa é semelhante à da psicanálise. As pessoas que vêem o Jô sentem-se mais importantes, menos boçais, assim como as madames que procuram um analista pretendem com isso driblar o vazio de suas vidas. Jô oferece uma espécie de compensação espiritual à estupidez da vida massificada, na qual estamos todos atolados.
Tudo isso seria menos nocivo se o programa cumprisse o que promete, se fizesse jus ao burburinho incessante que se faz à sua volta. Mas não é bem assim.
O programa começou, há alguns anos, inovando a forma de se fazer entrevistas na TV. Contra a rigidez e o padrão protocolar consagrado pela Globo, o SBT soube explorar o talento híbrido de Jô Soares. Ao seu velho papel de humorista e "show man", juntaram-se o improviso, a graça, o refinamento do entrevistador iconoclasta, que era capaz de receber um personagem sem brilho e extrair dele uma conversa deliciosa, quase inteligente.
À medida que o formato do programa foi se rotinizando, que as qualidades do entrevistador foram se cristalizando numa fórmula, Jô foi pouco a pouco "engolindo" seus entrevistados, até transformá-los numa espécie de trampolim para seu ego guloso. O que se tem hoje é um programa aborrecido, quase infame, que vive de insuflar o ego ilimitado e tentacular do entrevistador, como se ele se visse condenado a fazer da câmera o seu espelho particular.
Os subprodutos desse rumo tomado pelo programa estão à vista de todos. Jô não deixa muitos dos entrevistados falar, antes atropela-os sem cerimônia. Quando conversa com políticos, é comum chamá-los pelo prenome, simulando uma atmosfera de intimidade condenada pela boa tradição republicana, que manda separar o público do privado.
Muitas vezes mostra-se concessivo e pegajoso. Em outras ocasiões, expõe o entrevistado a constrangimentos e mesmo ao ridículo, sempre segundo as suas predileções pessoais e seus caprichos.
Mas se a "egotrip" hoje impera nos finais de noite do SBT, a culpa não é só de Jô Soares. Nisso ele conta com a ajuda decisiva de jornalistas, formadores de opinião, artistas e intelectuais, com os quais está em total sintonia.
A época em que vivemos é toda ela afirmativa, hostil à crítica, ao dissenso. A cada dia são identificadas novas doenças cujos portadores vão sendo progressivamente isolados do convívio coletivo, como se fossem acusados de crime de lesa-sociabilidade.
Os resultados dessa "limpeza" já se fazem visíveis: no caso da Presidência da República, estamos criando um déspota esclarecido; no caso da TV, uma vaca sagrada para consumo das elites. Alguém já disse: não há vida do espírito que resista a tamanha vassalagem.

Próximo Texto: CARTAS
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.