São Paulo, terça-feira, 11 de março de 1997
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Anacronismo

ANDRÉ LARA RESENDE

Compreendo a dificuldade dos jornais na época da informação imediata. Como tratar o que já estará ultrapassado quando o jornal for às ruas? Nada mais velho do que a notícia velha, mas acho que os jornais não deveriam tentar negar suas limitações.
Veja-se o caso da Fórmula 1 no fim-de-semana passado. O Grande Prêmio da Austrália abria o campeonato de 1997. Novas equipes, novos pilotos, promessa de um campeonato mais disputado do que os dos últimos anos. Acontece que a Austrália está do outro lado do mundo -são 14 horas de defasagem horária em relação ao Brasil. Resultado: a corrida que começava às 14h de domingo em Melbourne aconteceria à meia-noite de sábado no Brasil.
Os jornais de domingo fecham ainda mais cedo do que nos demais dias da semana. Não têm como noticiar a corrida. Impedidos de fazê-lo, os jornais de domingo optam por deixar de informar também sobre os treinos classificatórios de sábado. Com toda certeza, temem o anacronismo de noticiar os treinos classificatórios de uma corrida cujo resultado já será conhecido quando o jornal chegar ao leitor.
Pois nunca me conformei com esse procedimento. Quero poder ler sobre os treinos, mesmo quando já conheço o resultado da corrida. A informação em tempo real tem forte impacto sobre a imprensa e vai obrigá-la a se adaptar. Sobre isso não há dúvida, mas não a substituirá.
Os jornais não podem ter complexo de inferioridade em relação à comunicação em tempo real e, simplesmente, desconsiderar os acontecimentos cuja cobertura evidenciaria suas limitações. Muito pelo contrário, tenho a impressão de que o bom jornalismo contemporâneo é aquele que resiste relativamente bem à sua inevitável condição de informação para um leitor de posse de informações mais recentes.
Na semana passada assistimos a um outro exemplo extraordinário. Na quinta-feira, a comissão brasileira apresentou sua proposta para o Comitê Olímpico Internacional.
Os jornais da sexta-feira tratavam da apresentação. Acontece que a divulgação das cidades selecionadas como finalistas na disputa por sediar os Jogos Olímpicos de 2004 foi feita na própria manhã de sexta-feira.
Os jornais traziam páginas e páginas de torcida. Torcida realmente, porque se a informação era pouca, a objetividade era inexistente. Segundo as manchetes, a apresentação brasileira fora aplaudida de pé; o discurso emocionado de Pelé virara o jogo; inquestionável, a proposta brasileira não dera margem a perguntas; Havelange contava como fora a ação nos bastidores para garantir a vitória brasileira.
Poderia continuar -fiz questão de guardar os jornais-, mas, sinceramente, seria covardia.
Não me lembro de um episódio tão constrangedor: a parcialidade dos jornais do dia, desmascarada pelos fatos, poucas horas após sua chegada às bancas. Trata-se de uma parcialidade simpática -é verdade-, mas uma inacreditável parcialidade.
Pode ter me escapado, mas não vi uma única tentativa de compreender os critérios de avaliação do Comitê Olímpico, assim como uma análise objetiva das condições apresentadas pelas cidades concorrentes. Fariam sentido como leitura da sexta-feira, qualquer que fosse a decisão do Comitê. No dia seguinte, os jornais se recolheram a um silêncio fúnebre.

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