São Paulo, terça-feira, 11 de março de 1997
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A investigação na CPI dos Precatórios

ARNOLDO WALD; IVES GANDRA DA SILVA MARTINS

A moeda do sistema financeiro não é a moeda corrente do país, mas exclusivamente a moeda "confiança"
ARNOLDO WALD e IVES GANDRA DA SILVA MARTINS
Hannah Arendt, em seu livro "Lições sobre a Filosofia Política de Kant", admite que, no fim da vida, estava o grande pensador a preparar uma quarta obra, a complementar suas críticas da razão pura, prática e do juízo, que seria a "Crítica do Direito e da Justiça".
Impressionado pelas revoluções americana e francesa, Kant admitia, principalmente em relação a esta, que, apesar dos excessos dos que a promoveram, seus ideais transcendiam aquele momento histórico, muito além da própria percepção de seus promotores.
Chega Arendt a admitir que, se os revolucionários franceses, como Kant, percebessem a transcendência do movimento, os excessos poderiam ter sido evitados, e o fortalecimento daqueles ideais, menos traumático (igualdade, fraternidade, liberdade).
Cremos que a CPI dos Precatórios, por aqueles que os conduzem, tem muito de semelhante, no que diz respeito ao sistema financeiro, à percepção kantiana do fenômeno histórico de dois séculos atrás, na visão de Hannah.
Efetivamente, alguns dos ilustres congressistas que nela atuam não percebem a importância da reformulação dos regimes jurídicos e econômicos e da verdadeira revolução cultural no campo administrativo que provocará, por estarem mais preocupados com a apuração imediata de irregularidades praticadas, com nítido objetivo político (mais que institucional) em suas investigações. Por essa razão, correm o risco de incorrer no mesmo erro dos revolucionários franceses.
Para evitar que algo semelhante possa ocorrer no país, cujo Plano Real está alicerçado em duas pernas (política cambial e política monetária), é que sugerimos solução que nos parece adequada para o momento presente.
De início, estamos absolutamente de acordo que toda a verdade deva ser apurada. A investigação, em regime democrático, deve ser, todavia, com a observância do amplo direito de defesa (artigo 5º, incisos 54 e 55, da Constituição Federal) e do devido processo legal, o que vale dizer, sem que todos os envolvidos tenham sua imagem maculada pela veiculação de seus nomes antes do julgamento final.
Por outro lado, todos sabem, como dizia Galbraith, em "A Era da Incerteza", que o sistema financeiro não trabalha com dinheiro, mas com confiança. A moeda do sistema financeiro não é a moeda corrente do país, mas exclusivamente a moeda "confiança", em face da capacidade que tem de alavancar operações e multiplicar, pela velocidade de circulação da moeda, sua quantidade no mercado.
É no sistema financeiro que os países conseguem impulsionar seu desenvolvimento, pois alicerçam, em financiamentos para nações, empresas e cidadãos do mundo inteiro, todos os empreendimentos geradores de empregos. Assim, não há sociedade de consumo ou sociedade afluente sem crédito.
Ora, sempre que o sistema financeiro, que circula com a "moeda confiança", tem sua imagem desfigurada, à evidência, a instabilidade que se instaura pode gerar quebras e turbulências econômicas que atingem a todos, desde o mais humilde cidadão ao mais poderoso.
E quando todo o sistema sofre crise de confiabilidade, a tendência é de os investidores populares partirem para o consumo, podendo gerar inflação de demanda, criar as sementes para o pânico, o que, no sistema financeiro, é necessariamente desastroso.
Ora, como buscar a verdade nas irregularidades que estão sendo detectadas sem abalar o sistema como um todo? Utilizando-se de uma faculdade própria do Poder Judiciário, ou seja, transformar a CPI dos Precatórios em uma CPI que corra em segredo de Justiça, de tal maneira que só trará ao conhecimento público o nome de pessoas e instituições nesta envolvidas depois da plena investigação de suas ações e procedimentos, se comprovadas as irregularidades.
Entendemos que nada seria mais relevante, no presente momento, do que adotar a CPI dos Precatórios, que, pelo artigo 58, parágrafo 3º, da Constituição Federal, tem poderes investigatórios idênticos aos do Poder Judiciário, o mesmo procedimento que nas questões de relevância o Poder Judiciário pode adotar, impondo o segredo de Justiça, a fim de que as investigações sejam procedidas sem prejuízo dos interesses e imagem das pessoas e sem quaisquer pressões contra o interesse maior da Justiça.
Cabe, aliás, salientar que a legislação vigente (lei nº 4.595, artigo 38) garante o sigilo bancário nas informações prestadas pelo Banco Central ao Poder Judiciário e faculta às autoridades monetárias solicitar sejam mantidos em reserva os dados por elas comunicados ao Poder Legislativo, havendo motivo relevante.
No presente caso, são evidentes a importância da matéria e a necessidade de manter a confidencialidade das informações até o momento em que for concluída a investigação. Havendo, assim, a relevância da matéria, o segredo de Justiça se impõe, seja a pedido do Banco Central, guardião da credibilidade do sistema, seja por decisão do próprio Congresso Nacional.
Se o Senado Federal adotar medida de tal prudência, estamos convencidos de que a verdade será apurada com muito mais isenção, sem qualquer espécie de preconceituosa emoção e, mais do que isso, sem abalar a confiabilidade do sistema, colocado como um todo sob suspeição, quando apenas algumas pessoas e instituições poderão ser consideradas culpadas, ao fim da apuração.
Se todos estamos interessados no desenvolvimento do país, na preservação da ética, na manutenção da estabilidade e não em pôr "fogo no circo", devemos defender a tese de que devem correr as investigações em segredo de Justiça, para que se apure toda a verdade e se punam os reais fraudadores, não se maculando a imagem de pessoas e instituições antes mesmo do final das investigações. O país tem direito de conhecer a verdade, toda a verdade, mas só a verdade.

Arnoldo Wald, 63, é advogado e professor de direito na Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Ives Gandra da Silva Martins, 62, é professor emérito das universidades Mackenzie e Paulista e da Escola de Comando e Estado Maior do Exército, presidente da Academia Internacional de Direito e Economia e do Conselho de Estudos Jurídicos da Federação do Comércio do Estado de São Paulo.

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