São Paulo, sexta-feira, 14 de março de 1997
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As recusas de Raduan

AUGUSTO MASSI

nesse número, dedicado ao escritor paulista Raduan Nassar, os responsáveis pelos "Cadernos", conseguiram aclarar alguns critérios dessa publicação semestral que já se tornou referência obrigatória. De excelente acabamento gráfico, está organizada em torno de seções bem definidas, cujo objetivo é filtrar para o leitor as informações mais importantes.
Logo na abertura temos "Memória Seletiva", cronologia pormenorizada da vida e da obra do autor de "Lavoura Arcaica" (1975). A seguir vem "Confluências", que reúne depoimentos de interlocutores privilegiados. Mas o ponto alto dessa seção acabou ficando por conta de dois velhos amigos do escritor, Modesto Carone e José Carlos Abbate que, juntamente com Hamilton Trevisan (1936-1984) e o próprio Raduan, formavam um quarteto afinadíssimo de estudantes de direito do Largo de São Francisco, unidos pelo snooker, pela boêmia e pela literatura.
O depoimento de Carone é exemplar. Em poucas linhas retraça uma topografia sentimental do centro de São Paulo, final dos anos 50, para depois narrar a hilariante tentativa dos três amigos, três adolescentes metidos dentro de um táxi rumo à Baixada Santista, decididos a embarcar clandestinamente num navio, no porto de Santos, e só voltar com a "obra" pronta. Modesto deixa entrever que a boa ficção, quando crava suas unhas na memória, sempre expõe as marcas definitivas do real.
Enveredando por outro caminho, Abbate compõe um retrato agudo e sintético do amigo. Procedendo como um fotógrafo, depois de bater uma 3x4, realiza várias ampliações até atingir o núcleo da imagem, de onde emerge a figura do jovem Raduan, utilizando uma daquelas suas expressões de dois gumes, entre escritor romântico e conspirador profissional: em literatura é preciso estar atento ao "nível de execução".
A terceira seção, "Entrevista", é a mais problemática. Após uma maratona de 70 perguntas preparadas por Alfredo Bosi, Davi Arrigucci Jr., Leyla Perrone-Moisés, José Paulo Paes, Marilena Chaui e Octávio Ianni, além dos editores dos "Cadernos", Antonio Fernando De Franceschi e Rinaldo Gama, a impressão final é a de que entrevistadores e entrevistado não conseguiram transmitir a tensão e o calor de uma conversa. Raduan, por temperamento, é capaz de grandes confissões, passa facilmente do silêncio monástico ao jorro convulsivo da conversa, mas é perceptível uma certa "frieza" na entrevista.
Além disso, a ênfase exagerada nas leituras do autor ou nas prováveis influências que sofreu, relegou sua obra para segundo plano. Ou seja, a entrevista fracassa exatamente na sua tarefa primordial, facilitar ao leitor o acesso à obra estudada. Outro reparo: é preciso desconfiar de certas afirmações, especialmente quando se trata de um autor como Raduan, que gosta de utilizar procedimentos que guardam algum parentesco com a prática dos sofistas. A certa altura da entrevista, nega categoricamente que tenha lido James Joyce; entretanto, qualquer leitor que resolva entrar pela porta dos fundos da primeira edição de "Um Copo de Cólera" (1978) topará com uma nota surpreendente: "O autor parafraseou ainda uma pequena passagem de 'O Artista Quando Jovem', de James Joyce...".
"Geografia pessoal" traz fotografias de Pindorama, cidade na qual Raduan nasceu, em 1935, e viveu até os 18 anos, quando transferiu-se para a capital. É interessante notar como os comentários-relâmpagos de Raduan, escritos especialmente para dialogar com o ensaio fotográfico de Eduardo Simões, acabam lançando luz sobre a novela "Menina a Caminho". O mesmo não se dá com as fotos da Fazenda Lagoa do Sino, para as quais não há nenhuma legenda, permitindo a leitores afoitos tomá-la equivocadamente como o cenário de "Um Copo de Cólera". A falta de informação pode gerar uma falsa informação.
Chegamos à seção "Inédito" que conseguiu resgatar da "safrinha" de textos do autor "Hoje de Madrugada", conto escrito em 1970. Trata-se de uma pequena obra-prima que, isoladamente, já constituiria um acontecimento. Mas, vista no conjunto das narrativas curtas de Raduan, guarda um ar de família com "Aí Pelas Três da Tarde" e sobretudo com "O Ventre Seco". O conto parece anunciar que Raduan, pela primeira vez, penetrou na longa madrugada de silêncio. Em "Hoje de Madrugada" já não há explosões de cólera, esporro ou bate-boca, tudo se resume a estalidos do assoalho e súplicas amorosas. Por intermédio do conto, realizamos uma viagem ao redor do "quarto é inviolável; o quarto é individual", que figura na abertura de "Lavoura Arcaica", ou somos enviados ao bilhete "estou no quarto" e à expressão "minha cela", que figuram nas páginas finais de "Um Copo de Cólera". A calculada crueldade encenada em "Hoje de Madrugada" tem um quê de apelo e última mensagem, estoicismo e egoísmo, rompimento e estocada. Nesse quarto parece que nada se conjuga.
Sob este ângulo, a obra de Raduan sugere um estrangulamento do espaço que tem início numa cidade ("Menina a Caminho"), restringe-se à família ("Lavoura Arcaica") e fecha o foco num casal ("Um Copo de Cólera"). Há uma poderosa correspondência entre esse processo de afunilamento e as diferentes fases da vida (infância, adolescência e maturidade). Para não falar de uma inquietante familiaridade entre língua e poder. Os seus personagens giram num carrossel narrativo, oscilando entre liberdade e servidão: a criança caminha em silêncio e capta conversas crivadas de violência ("Menina a Caminho"); André resiste e questiona a pregação do pai ("Lavoura"); um casal sem filhos transita numa rua de mão dupla: diálogo desbragado e teatro da crueldade ("Um Copo"). Raduan imprime uma série de deslocamentos visíveis apenas para quem decifra a circularidade sem repouso de suas histórias, repletas de partidas e retornos. As suas rupturas estão entrincheiradas na repetição: a cena presenciada pela criança em "Menina a Caminho" é reencenada, agora diante dos empregados, pelo casal de "Um Copo".
Por fim, fechando o volume está o excelente ensaio de Leyla Perrone-Moisés, "Da Cólera ao Silêncio". É com precisão que Leyla aponta as qualidades literárias que conferem originalidade ao projeto de Raduan e, entre elas, destaca a capacidade de alterar os registros: "Aqui (em 'Um Copo de Cólera') o registro oral, moderno e chulo, substitui o registro arcaico, profético e precioso do primeiro romance ('Lavoura Arcaica')".
Partindo do pressuposto de que para Raduan "as questões éticas se colocam antes de tudo como questões de linguagem", Leyla pontua com eficácia os principais embates armados pelo ficcionista -ordem e desordem, discurso anárquico e autoritário- para concluir que "todos os textos do escritor se constroem em torno de uma recusa: recusa da obediência, recusa da cumplicidade, recusa do amor".
Na bibliografia que encerra o volume pode-se perceber o quanto Raduan vem sendo lido e estudado -ou seja, está longe de ser um maldito. Atualmente, penso que dois problemas afetam uma avaliação mais adequada de seu papel dentro da literatura brasileira contemporânea. O primeiro é a insistência com que se discutem os motivos que levaram o escritor a abandonar a literatura. No afã de resolver este enigma, talvez obscuro até mesmo para o autor, corre-se o risco de eclipsar a força de uma obra que fala por si mesma. Está fora de dúvida que, com apenas três livros e alguns contos, Raduan pode ser considerado, ao lado de Dalton Trevisan, o principal nome da literatura brasileira contemporânea.
O segundo problema: até agora estudou-se o que daria unidade ao conjunto de sua obra, deixando de lado os aspectos dissonantes. Esse desejo de univocidade sugere uma aproximação entre Raduan e os protagonistas de seus textos. Evidentemente sua literatura está enraizada numa experiência autobiográfica, contendo inclusive um roteiro perfeito: vai da infância no interior em "Menina a Caminho", passa pela adolescência em "Lavoura Arcaica" e termina às voltas com a guerra conjugal de "Um Copo de Cólera". Entretanto, fissuras significativas inviabilizam esse viés interpretativo. Em "Menina a Caminho", ao adotar um olhar infantil e feminino, Raduan descarta de saída esse tipo de abordagem. Mas, na expectativa de evitar outras confusões, retirou a dedicatória ao pai, que constava na primeira edição de "Lavoura Arcaica". Talvez queira nos lembrar que a interpretação autobiográfica empobrece o alcance de sua obra.
Uma última observação: ao que tudo indica, haverá alternância entre nomes consagrados como João Cabral, homenageado no primeiro número, e autores como Raduan Nassar, cujo reconhecimento crítico encontra cada vez mais ressonância. Dentro dessa lógica, é difícil aceitar a escolha de Jorge Amado para o terceiro número, pois ela confere aos "Cadernos" um ar meio oficial, veículo de divulgação de medalhões das letras nacionais. Espero que vingue a radicalidade inicial.

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