São Paulo, sexta-feira, 14 de março de 1997
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Retrato de um artesão

ALBERTO GUZIK

do livro de memórias de Gianni Ratto emana o feitiço do velho "Maestro", desse octogenário exemplar pela inteligência, pela cultura ampla, pela carreira dedicada às artes cênicas, pela lucidez com que julga sua obra.
O livro não está dividido em partes ou capítulos, é um jorro contínuo de memórias e reflexões. Ratto, que durante toda a vida trabalhou com espetáculos divididos em atos, em fatias, parece ter-se decidido a dar a seu livro uma estrutura cinematográfica, não teatral. A narrativa é ampla e está dividida em cenas, nada mais.
O italiano Gianni Ratto, que aqui chegou aos 36 anos, em 1954, a convite de Maria Della Costa, deixou em seu país uma carreira sólida, repleta de realizações no campo do teatro de prosa, da ópera, até do teatro de revista. Foi o gosto pela aventura e a ambição que o levaram a deixar o posto importante que ocupava no teatro italiano. Que ambição? A de tornar-se diretor. Pois a quase totalidade de seu trabalho na Itália estava vinculada à cenografia e aos figurinos.
A possibilidade de responder pela montagem do texto de um autor famoso na época, "O Canto da Cotovia", de Jean Anouilh, na inauguração do Teatro Maria Della Costa, encantou o artista. Ratto veio para o Brasil para comandar a bem-sucedida produção de Sandro Polloni, que tinha no papel central a atriz com cujo nome foi batizado o edifício. Pouco tempo depois, Ratto estaria à frente de outra produção do TMDC, "A Moratória". Revelaram-se ali os talentos de Jorge Andrade e de Fernanda Montenegro. Novos aplausos e prêmios.
Em 1956, o dinâmico Franco Zampari, diretor do Teatro Brasileiro de Comédia, convidou Ratto para integrar as fileiras da casa. Era tradição do TBC confiar a direção de seus espetáculos a europeus, especialmente italianos. A receita dera certo em 1949, com o primeiro espetáculo profissional produzido por Zampari, "Nick Bar" -encenação assinada por Adolfo Celi-, e o empresário não vira razão para mudar a regra.
Mas o TBC, em 1956, já sofria as primeiras consequências da crise administrativa e financeira que o levaria à morte, oito anos mais tarde. Os diretores estrangeiros, por sua vez, passavam a sofrer a concorrência dos brasileiros. Nos anos 50, firmar-se-iam os nomes de Augusto Boal, Antunes Filho, Flávio Rangel, Ademar Guerra etc. De todos os italianos que vieram para o Brasil, apenas Ratto ligou seu destino em definitivo ao novo país. No entanto, curiosamente, não se deu muito bem no TBC, até então o principal reduto dos encenadores peninsulares.
Zampari, de olho no sucesso de "O Canto da Cotovia", confiou-lhe a montagem de outro original de Anouilh, "Eurídice". A receita não deu certo, a montagem fracassou e Ratto teve um desentendimento irreconciliável com Zampari. Ainda dirigiu para o empresário uma comédia norte-americana, "Nossa Vida com Papai". Em fins de 1958, em companhia de Fernanda Montenegro, Fernando Torres, Ítalo Rossi, todos saídos do TBC, Ratto formou o Teatro dos Sete, no Rio. A primeira montagem da nova companhia, "O Mambembe", burleta de Artur Azevedo, fez um sucesso de crítica e público que superou em muito o da auspiciosa estréia de Gianni Ratto.
O diretor não demorou a se instalar em definitivo no Brasil. E nem a conhecer agruras várias. Como o fracasso de outra produção do Teatro dos Sete, "O Cristo Proclamado", de Francisco Pereira da Silva. Ou a destruição, pelos esbirros do regime militar, do projeto mais importante que organizou no Brasil, o Teatro Novo, misto de escola, companhia de teatro e de dança, que floresceu breve e intensamente no Rio, em fins dos anos 60, e foi estupidamente fechado pela polícia.
Mas Ratto conheceu também inúmeros sucessos. Assinou espetáculos de enorme aceitação popular, entre eles um célebre Festival de Comédia, em que Fernanda Montenegro cintilava de talento em "Os Ciúmes de um Pedestre", de Martins Pena. E dirigiu montagens que hoje integram a história do teatro brasileiro, caso de "Se Correr o Bicho Pega, Se Ficar o Bicho Come", de Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar, e "Gota d'Água", de Paulo Pontes e Chico Buarque, onde Bibi Ferreira desenhou uma interpretação de dimensões antológicas.
É comum ouvir gente da classe teatral chamando Gianni Ratto de "Maestro". E, embora nunca tenha dado aula regularmente, ele é mestre de todos nós. Da dignidade no exercício do teatro, da seriedade com que encara sua profissão, da consciência que demonstra ao distinguir seus projetos ambiciosos das realizações medianas, de tudo isso Ratto nos dá lições em "A Mochila do Mascate". E com admirável ironia oferece seu livro, em primeiro lugar, aos que o consideram "reacionário, acadêmico e careta".
Além de não dividir "A Mochila" em partes ou atos, apenas em cenas, Gianni Ratto tampouco se preocupa em manter a cronologia da narrativa. Os três principais veios de memórias que compõem o livro, as lembranças italianas, as brasileiras e as reflexões sobre o exercício do teatro, surgem aleatoriamente. O relato de uma experiência profissional de início de carreira, na Itália, pode estar ao lado da evocação de uma realização da maturidade, no Brasil.
Os fragmentos sucedem-se como "causos" evocados ao longo de uma conversa sossegada. Aliás, quem conhece Ratto pode ouvir em certas frases do livro o recorte melodioso do sotaque italiano que nunca deixa de permear o português culto e erudito que fala em voz grave, levemente anasalada. O formato do livro exime o autor da gravidade pomposa e muitas vezes oca de uma autobiografia.
O que mais parece admirável em "A Mochila do Mascate" é a vaidade domada do autor. Vaidoso ele é, como todo artista. Mas não fez de seu livro uma tentativa de provar, a cada linha, o quanto lhe deve o mundo. Com a mesma franqueza, admite fracassos, derrotas, equívocos.
Ao final do livro, o que surge, de corpo inteiro, é o retrato de um artesão que construiu uma vida digna, pontilhada de realizações admiráveis, mercadejando suas habilidades, suas técnicas, que aprendeu com professores mortos há muito tempo.
"A Mochila do Mascate" é um repositório de histórias e observações tiradas da experiência. Em certas passagens, o autor deixa-se levar pelo assunto. É quando seu texto preciso, factual, atinge imprevistas altitudes. Basta um exemplo: "O espaço cênico não tem limites: ele se multiplica pela dimensão do texto e de suas personagens. Ele não pode ser medido por metros quadrados ou cúbicos; ele existe -infinito- onde uma palavra de poesia ressoa. O vazio do palco é o espaço ideal para a palavra do poeta". W. B. Yeats, o dramaturgo-poeta irlandês, certamente assinaria essas palavras.

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