São Paulo, sexta-feira, 14 de março de 1997
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Poesia a oriente

HAROLDO DE CAMPOS

o especialista em literatura japonesa e notável comparatista Earl Miner, em livro recentemente traduzido para o português (1), aponta o caráter "paroquial" ou "provinciano" da concepção ocidental de literatura, em suas pretensões "normativas" de canonicidade, excludentes de outras e diferentes tradições literárias (a chinesa, a japonesa, a sânscrita, a hebraica, a árabe, por exemplo). Considerar comparativamente esses outros domínios, sem a preocupação de impor-lhes um modelo "eurocêntrico", mas respeitando a especificidade de suas poéticas não-aristotélicas, eis o que nos sugere o autor dessa instigante obra, para que possamos "penetrar na plena dimensão heterocósmica da literatura". E assinala: "O grande proveito do estudo comparativo intercultural é que ele nos resguarda de assumirmos o que é local como se fosse o constante e, acima de tudo, o familiar como se fosse o inevitável".
No Brasil, ainda são poucos os trabalhos que contribuem para um conhecimento mais próximo das literaturas não-ocidentais e que poderiam servir de ponte para um ulterior tratamento comparatista. Vou resenhar aqui alguns deles, publicados nos últimos anos, referentes à poesia do Extremo Oriente.
Lugar especial, neste contexto, merece o livro da professora Geny Wakisaka, "Man'yôsh–" (2). Trata-se de um trabalho muito bem documentado sobre a mais antiga antologia de poesia japonesa, a chamada "Reunião de Dez Mil Folhas". Esse "Milifólio" ou "Multifólio" poético, organizado no século 8º de nossa era, compõe-se de 20 volumes, compreendendo 4.516 poemas, o último dos quais datado do ano 759. Sua primeira versão completa só veio à luz em 1991 (três grandes volumes), graças ao labor do octogenário professor Suga Teruo, da Universidade de Kanda (escrupulosas traduções literais, para o inglês, sem escopo de reconfiguração estética).
Para o estudioso de poesia japonesa, o livro da professora Wakisaka é uma fonte preciosa de informações (a primeira obra do gênero, tanto quanto sei, em nossa língua). Detém-se sobre o contexto sócio-histórico da época; enfoca a estrutura e a composição da antologia; os problemas de grafia e leitura; oferece ainda, além de uma breve antologia bilíngue, de caráter ilustrativo, detalhadas análises de grupos de poemas e um excurso comparativo sobre dois eminentes autores do "Man'yôsh–", Kakinomotono Hitomaro (o mais importante de toda a antologia) e Yamabeno Akahito, seu seguidor, exímio na forma breve ("tanka"). Akahito é o responsável por um "novo estilo poético", ainda que não tenha sido capaz de superar o celebrado mestre do "chôka" (poema longo) Hitomaro, um dos "santos" da poesia nipônica.
Yun Jung Im tem-se empenhado na divulgação entre nós da poesia coreana, clássica e moderna. Venho acompanhando as etapas de seu trabalho, recolhido até o momento em dois livros: "O Pássaro que Comeu o Sol" (3) e "Sijô/Poesia-Canto Coreana Clássica" (4), este último em colaboração com o músico e poeta Alberto Marsicano. Não conheço o idioma coreano, que no entanto me seduz por sua beleza sonora e por sua intrigante e harmoniosa escrita. Mas posso avaliar o resultado poético em português do trabalho empreendido por Yun (e, no caso do "Sijô", por Yun e Marsicano).
Comparando esse resultado com, por exemplo, o obtido em espanhol por Yong-Tae Min ("Poesía Coreana Actual") ou, no caso do "Sijô", com aquele decorrente da versão para o inglês de Kevin O'Rourke ("The Sijô Tradition"), põe-se de manifesto que as recriações em nosso idioma, mais ousadas e econômicas, são superiores às outras duas na configuração poética final. No caso do "Sijô", a opção por uma forma estrófica, regida visualmente por um eixo central, foi um feliz achado da dupla Yun-Marsicano, contribuindo para preservar a síntese imagética e a concisão elocutória da poesia coreana.
No caso da poesia moderna, onde as dicções dos autores variam, desde um tardo-romantismo, já nuançado de simbolismo e impressionismo, para formas mais audazes, não isentas de influências ocidentais (surrealismo, construtivismo), há no conjunto uma boa escolha de autores, destacando-se, pela singularidade experimental da linguagem, eficazmente presente na versão brasileira, o transgressivo poeta Yi Sang (1910-1937). Paulo Leminski, em breve prefácio ("Coréia: um País Que Se Chama Dança"), aponta-o certeiramente como "a revelação do livro". Sei que a tradutora prepara uma coletânea mais ampla desse surpreendente poeta (e também prosador), cuja vida foi precocemente truncada pela tuberculose e pelo "dérèglement" boêmio. De sua importância, diz o fato de ter sido incluído no volume inaugural da antologia de Jerome Rothenberg e Pierre Jonis,"Poems for the Millennium"(1995), um empreendimento ambicioso, caracterizado pelo propósito de dar uma visão abrangente da poesia do século 20, com ênfase especial nas contribuições inovadoras procedentes das mais variadas literaturas. Segundo Walter K. Lew, excelente tradutor do poeta para o inglês, a obra produzida por Yi Sang em sua breve carreira permanece, não obstante, mais de meio século após sua morte, insuperada pela de qualquer outro autor coreano, no que tem de "impetuosa experimentação", em sua linguagem marcada por "estranhamentos formais" e "pela rebeldia".
No domínio da poesia chinesa, gostaria de fazer referência a um evento notável em língua vernácula. Trata-se da "Revista de Cultura". O número mais recente dessa revista, esplendidamente impresso e ilustrado, é totalmente dedicado à "Arte Poética da China" e a traduções de poesia chinesa para o português. Compreende ensaios de poética por François Cheng, Li Ching e Ramón Lay Mazo, um belo dossiê sobre as "Elegias Chinesas" traduzidas com toque de mestre pelo poeta de "Clepsidra", Camilo Pessanha, além de outras contribuições. O prof. Li Ching, docente de língua e cultura chinesa da Universidade Clássica de Lisboa, contribui com uma antologia de objetivo "pedagógico e didático", regida pelo critério da "fidelidade no que concerne ao significado dos caracteres e ideogramas". Nessa ampla recolha, estão representados desde o famoso letrado e político Qu Yuan (343?-277 a.C.), o primeiro poeta que obteve reconhecimento na história da literatura chinesa, até poetas modernos como Guo Mo Ruo (1892-1978), cuja coletânea inaugural "Nushen" ("Deusas"), de 1921, marcou época. O autor expressava um panteísmo politeísta de inspiração chinesa com apropriações da mitologia ocidental, caracterizando-se por uma "grande liberdade de composição e de língua" (Paul Bady, "La Littérature Chinoise Moderne", PUF, 1993). Todas as traduções coligidas são acompanhadas do texto chinês, de sua transcrição fônica e de sua transposição na ordem sintática original.
Também no domínio que estamos examinando é importante mencionar a publicação, no ano que passou, de "Poemas Chineses" (Li Po e Tu Fu), na versão até agora inédita de Cecília Meirelles. Trata-se de traduções indiretas, feitas a partir do francês e do inglês. Dona de um apurado artesanato, a poeta brasileira adaptou os textos chineses a seu estilo lírico peculiar, entre simbolista e impressionista, ritmicamente fluente, dotado de um inegável encanto. Não são, porém, traduções radicais, que "estranhem" nosso idioma ao contágio das peculiaridades antidiscursivas da língua chinesa. Antes, filiam-se ao padrão das versões pioneiras de Judith Gautier ("Le Livre de Jade", 1908), filha do poeta Théophile Gautier, dedicada ao estudo do chinês, que desenvolveu suas elegantes adaptações poéticas no âmbito finissecular do tardo-simbolismo francês. Quanto à nossa Cecília Meirelles, vem aqui a propósito referir o parecer de Antonio Candido e Aderaldo Castello ("Presença da Literatura Brasileira"), para os quais a autora de "Viagem" pode ser considerada "a herdeira do simbolismo na poesia modernista brasileira".
Já Décio Pignatari, no pequeno grupo de versões de clássicos chineses que incluiu em "31 Poetas e 214 Poemas", embora também trabalhe a partir de fontes indiretas, intentou, como era de esperar, uma intervenção de cunho radical. Orientando-se pela busca de compreensão da "máquina pensamental" da poesia ideogramática, não hesitou em recorrer a técnicas ousadas, desde a espacialização tipográfica até a complexa orquestração da tessitura assonântica. É o que fascina em suas mais exitosas recriações ("Visita a um Taoísta", "Canção 3, 5, 7", "Lamento da Escada de Jade", todas de Li Po, ou "Cromo Antigo", de autor anônimo).
Num livro destacado por Earl Miner como trabalho pioneiro no campo dos estudos comparativos interculturais, o atualizado sinólogo Wai-lim-Yip esmiuçou as famosas e discutidas traduções poundianas da poesia clássica chinesa ("Ezra Pound's Cathay", 1969). Yip conclui que "a total ignorância do chinês" por parte do grande poeta americano, à época em que traduziu os poemas de sua coletânea (1915), apoiando-se nas anotações de Fenollosa, não impediu que "Cathay" consistisse, fundamentalmente, num "soberbo conjunto de poemas". O estudioso atribui esse resultado estético a uma espécie de "clarividência", que, apesar dos eventuais equívocos de leitura, conduzia Pound a uma "compreensão medular" da estrutura dos textos poéticos chineses, levando-o a romper as "barreiras verbais" até atingir o "núcleo do poema". Algo aproximado se poderia dizer da peculiar afinidade poética que se estabelece entre as recriações pignatarianas e alguma coisa de essencial, captada no "modo de formar" dos respectivos textos de origem. Esta conclusão vale também para as surpreendentes traduções de poemas do mestre haicaísta japonês Issa (1767-1824), que Pignatari, guiando-se por versões para o inglês, reinventa em nossa língua com graça e farpa.

Notas:
1. Miner, Earl - "Poética Comparada", Ed. da Universidade de Brasília, 1996.
2. Wakisaka, Geny - "Man'yôshu", Hucitec, 1992.
3. Arte Pau-Brasil, 1993.
4. Iluminuras/Fundação Coreana de Arte e Cultura, 1994.

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