São Paulo, sexta-feira, 14 de março de 1997
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Um clássico do riso

JACYNTHO LINS BRANDÃO

assistimos, no fim do ano passado, à aparição quase simultânea das primeiras edições brasileiras de Luciano. Curiosamente, duas traduções do mesmo texto, os "Diálogos dos Mortos", de autoria de Maria Celeste Consolin Dezotti e de Henrique Murachco. Talvez a coincidência se deva à origem dos trabalhos, já que ambos são professores de grego (na Universidade Estadual Paulista, em Araraquara, e na Universidade de São Paulo, respectivamente) -e os "Diálogos dos Mortos" são o texto de Luciano de maior utilização escolar. Sua primeira versão portuguesa publicou-se em Lisboa, em 1739; uma segunda tradução apareceu em 1989, em Coimbra, feita por Costa Ramalho. Assim, ainda que já tivessem antes falado português, os mortos de Luciano nunca tinham se expressado no português do Brasil.
Luciano de Samósata é uma personalidade controvertida, sobre cuja vida pouco sabemos, embora toda sua obra tenha sido conservada. É provável que, nascido na Síria, tenha vivido no século 2 de nossa era, em pontos diversos do Império, como a Gália, Roma, Atenas e Alexandria. O que seus textos transmitem é a imagem de um intelectual irrequieto e penetrante, cuja sátira ferina não poupa nada, nem o poder imperial, nem as injustiças sociais, nem mesmo os deuses, a filosofia, a retórica, a religião, a medicina e a própria literatura. No fundo, trata-se de um arguto pensador da cultura, que expõe ao riso o absurdo da condição humana.
Pode-se dizer que Luciano é um "clássico desconhecido". Não se estranhe o aparente paradoxo: é que ele vem influenciando autores de todas as épocas, dentre os quais alguns dos expoentes das literaturas de expressão portuguesa, como Gil Vicente e o nosso Machado de Assis. Bakhtin identificou uma ininterrupta tradição luciânica na literatura ocidental (a que chamou, equivocadamente, de "menipéia"), estendendo-se da Antiguidade tardia a Dostoievski. Isso impulsionou grande número de pesquisas na área da literatura comparada, ressaltando-se a dívida para com Luciano em escritores como Voltaire, Swift, Erasmo, Diderot, Thomas Morus e outros. Provam a vitalidade da tradição luciânica autores contemporâneos como o holandês Cees Nooteboom, cujo premiado "A Seguinte História..." é nada mais que um pós-moderno diálogo de mortos. Tudo isso, porém, não tirou Luciano do desconhecimento. Já era pois tempo de colocar-se nas mãos do leitor brasileiro o próprio Luciano, o que se faz agora em dose dupla, em edições que trazem o texto grego e excelentes traduções.
Que essas edições pioneiras sejam dos "Diálogos dos Mortos" tem lá suas vantagens. Em primeiro lugar, porque essa coleção de 30 breves textos revela bem quem é Luciano: ele brinca com a tradição, mistura livremente figuras históricas distanciadas no tempo e no espaço e rompe as barreiras entre verdade e ficção, ao fazer conversarem uns com os outros Sócrates e Menipo, Alexandre e Aníbal, Diógenes e Héracles, em rápidos flashes. Em segundo lugar, porque essas personagens, mergulhadas num verdadeiro carnaval no além, debatem sobre a condição humana de um ponto de vista radical, posto que não sob a ótica dos vivos, mas dos mortos.
Finalmente, porque o leitor "pós-modernista" descobrirá nos textos rápidos, que se sucedem sem concatenação manifesta, um sabor bem atual de videoclipe. De fato, o tom da obra de Luciano está nos processos de ruptura, que ela expõe através da própria fragmentariedade e da suspensão (e suspeição) de todos os valores. Essas qualidades fizeram dele um autor predileto dos períodos de crise, provavelmente porque, mais que ninguém, captou e ecoou a vasta crise dos dois primeiros séculos de nossa era, no fim da Antiguidade e nos albores do mundo moderno.
As duas recentes traduções dos "Diálogos dos Mortos" são bem feitas e agradáveis, embora diferentes. Ambos os tradutores confessam o desejo de realizar uma versão leve, que não torne opaca para o leitor brasileiro a verve luciânica. Sabe-se como o cômico é mais difícil de traduzir que o sério, sobretudo quando há entre o original e a tradução nada menos que 18 séculos!
Traduzir Luciano nunca foi fácil. Seu primeiro livro em português, de 1733, trazia num único volume duas traduções diferentes de um mesmo texto, "Como se Deve Escrever a História", feitas por dois confrades lisboetas, Frei Jacintho e Frei Manoel. Esse documento ímpar, de que a Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro guarda um precioso exemplar, pereniza uma disputa ainda atual sobre a melhor forma de traduzir: frei Manoel defendia que se vertessem as sentenças sem ater-se às palavras, manifestando-se o pensamento do autor; já frei Jacintho preferia ater-se às palavras e às frases gregas. Chamado a opinar, o conde de Ericeira considerou que, na tradução do primeiro, Luciano ficava mais entendido, útil e eloquente; na do segundo, mais discreto, amável e dissonante. Assim, a publicação, ainda que em volumes separados, das traduções de Dezotti e Murachco, faz como que repetir-se a história do primeiro Luciano português nesse nosso primeiro Luciano brasileiro.
Não vou aqui assumir o papel do conde setecentista, até porque o leitor curioso poderá cotejar por si mesmo os dois trabalhos. Apenas observaria que a tradução de Murachco tem um sabor mais tradicional, talvez pelo fato de usar a segunda pessoa e ater-se menos à frase grega, preferindo certas paráfrases. Dezotti é mais coloquial, usa sempre "você" e arrisca soluções capazes de reproduzir o impacto que certas expressões têm no original. Compare-se a fala de Caronte aos mortos que chegam junto de sua barca. Murachco traduz: "Ouvi todos aí, como está a situação. Como estais vendo, o barco é pequeno e está muito ruim. Está entrando água por todos os lados...". Já Dezotti escreveu: "Ouçam qual é a situação de vocês. Como vêem, essa banheira é pequena para tanta gente, está praticamente podre e faz água por todos os lados". Ambos são corretos, mas decerto atendem a critérios e gostos diferentes, o que se demonstra em mais um exemplo: o ditado grego que diz "o filhote de veado (caçou, venceu) o leão" -indicando uma situação inesperada- foi traduzido por Murachco simplesmente como "e o veado comeu o leão", enquanto Dezotti abrasileirou a expressão e transformou o provérbio em "o rato pegou o gato".
Com leões ou gatos, o certo é que o leitor encontrará, em qualquer das duas versões, motivo para meditar e sobretudo divertir-se. Quando o mundo dos vivos é enfocado pelos mortos, resta apenas isso: rir continuamente, como fazem Diógenes, Menipo e o próprio Luciano. Rir dos ricos, dos poderosos, dos enfatuados -mas também, e principalmente, rir dos vivos, isto é, de nós mesmos. Suma sabedoria!

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