São Paulo, domingo, 16 de março de 1997
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Corpo, a próxima fronteira do capital

DENISE BERNUZZI DE SANT'ANNA
ESPECIAL PARA A FOLHA

No dia 27 de junho de 1985, Janel Daoud, prisioneiro francês, cortou a metade do próprio dedo mindinho para enviá-lo ao ministro da Justiça pelo correio. O objetivo de Daoud era chamar a atenção sobre o seu processo. Mas, antes que ele pudesse despachar o seu dedo, as autoridades da prisão confiscaram-no. O prisioneiro, evidentemente, não tardou a reivindicar a restituição daquele dedo que "era" seu.
A partir daí, teve início uma celeuma que extrapolou os muros da prisão, envolvendo advogados, políticos e a imprensa. As divergências se acumularam. De quem era aquele dedo sem mão? O advogado do prisioneiro, por exemplo, alegou que um dedo não era um objeto como um outro qualquer, como uma carteira retirada do prisioneiro em sua entrada à prisão e restituída no dia de sua saída. Um juiz, diferentemente, estimou que uma parte do corpo cortada e dele separada era uma "coisa", um objeto tal qual o vidro onde estava o polêmico dedo.
Tão bizarro quanto o caso do dedo francês foi aquele das células do americano John Moore. Um belo dia, este cidadão descobre que células retiradas do seu corpo, consideradas únicas no mundo, foram patenteadas, servindo à produção de medicamentos para as empresas farmacêuticas. Em 1988, ele reivindica a propriedade de suas células e a Justiça lhe dá ganho de causa, baseada no princípio de que um homem possui o direito de propriedade sobre os produtos de seu corpo. Mas, em 1990, a Corte Suprema da Califórnia lhe nega este direito. As células de Moore não são mais suas.
O "affaire Daoud", o caso Moore, assim como a recente lei brasileira sobre doação de órgãos, contribuem, cada qual a seu modo, para colocar na ordem do dia um debate sobre o estatuto do corpo. No caso de Daoud, vê-se claramente como uma parte do corpo humano pode flutuar entre uma interpretação que lhe concede a qualidade de um "objeto" e uma visão que pensa o organismo como uma totalidade, cujas partes não podem ser alienadas.
As células do cidadão norte-americano John Moore também colocam em discussão o problema da alienação de partes do corpo do sujeito humano. Mas elas fazem mais do que isso: a polêmica em torno da sua propriedade demonstra, claramente, a transformação de fragmentos do corpo em mercadorias; e, o que é mais grave, sem a autorização ou aquiescência de Moore. Uma vez que estas valiosas células se tornaram componentes de medicamentos, a Justiça americana decidiu que, em nome da dignidade humana, John Moore não era proprietário de seu corpo, que as células retiradas dele eram um bem para aqueles que, ao transformá-las em mercadorias, poderiam patentear produtos industriais.
A lei brasileira de doação de órgãos também se insere neste debate. Mas, no nosso caso, ela tem dado lugar a dois tipos de manifestações: em nome do direito à vida, se é a favor da doação presumida; em nome da propriedade do corpo, a doação é recusada. Em nome do direito à vida, a recusa em doar os próprios órgãos torna-se um ato egoísta, anacrônico, ridículo e, em nome do direito à propriedade do próprio corpo, a doação presumida torna-se autoritária, invasiva e desrespeitosa para com as diversas culturas.
Contudo, depois que a lei foi sancionada, o debate se tornou mais complexo: os interesses e as condições reais das instituições e dos profissionais, encarregados justamente em cuidar da vida e do corpo, começaram a aparecer. Desde então, percebeu-se que, na prática, nem o direito à vida, nem o direito à propriedade do corpo fazem sentido se não forem consideradas as deficiências dos sistemas de recepção e distribuição de órgãos, as condições da nossa pesquisa científica, sem falar da assustadora realidade do comércio ilegal e planetário de pedaços do corpo (entre os quais se destacam córneas, rins e pele).
Tráfico no qual as populações pobres servem de armazéns vivos às populações ricas. Pois não há "zona neutra", distante de todo valor econômico, em que supostamente circulariam células, genes, plasma etc. Podendo ser cultivados e conservados fora de seu contexto orgânico inicial, mesmo fragmentos microscópicos do corpo significam um capital altamente rentável aos grupos que detêm a sua propriedade.
Sem informações sobre como a vida e o corpo são tratados nos laboratórios, indústrias e hospitais, o discurso em prol da vida e do corpo corre o risco de se assemelhar ao dedo cortado de Daoud: uma figura anônima, sem passado. Uma figura "desinformada", sem a memória dos interesses específicos que a ligavam a um corpo. Fica-se, assim, com um argumento sem rosto e, por isso mesmo, perigosamente capaz de servir aos mais diversos fins.
Ora, nossa época é particularmente sensível em relação à promessa do "direito à vida". A vulgarização dessa tendência floresce na publicidade, seduzida pelo apelo ao "bio", e na megaindústria alimentar-terapêutica, que facilmente se agrega às indústrias do lazer e do bem-estar. Como se fosse possível dizer: a vida está na moda! Entretanto, parece que ainda estamos longe de dar lugar a sentimentos tão gerais e enfáticos quando se trata de defender o direito à informação de toda a população sobre as possibilidades de vida e também de morte, geradas no cotidiano de laboratórios, indústrias e no domínio da pesquisa científica.
A morte encefálica, por exemplo, não é uma novidade criada pela lei de doação de órgãos, em seu artigo 3º. Aliás, somente este artigo mereceria um debate especial, pois, para o imaginário de muitos, doravante, morrer e viver mudaram de sentido: a vida do coração, outrora órgão-rei, ou a vida do pulmão, que no apogeu da termodinâmica foi considerado o centro do calor vital, o órgão do espírito, devem ser mantidas após a morte encefálica para possibilitar o transplante. Aqui, a morte ideal não é aquela em que o "descanse em paz" pode ser dito a todos os órgãos. Bichat havia afirmado que a vida era "um conjunto de forças que resiste à morte". Hoje, paradoxalmente, a morte encefálica, a morte ideal para possibilitar o transplante, também possui esse significado.
Certamente, assistimos à circulação de muitas informações sobre o corpo. Talvez nossa época seja a mais dedicada a problematizar, adular, cultivar e explorar comercialmente o corpo, sobretudo o dos jovens. A moda do corpo, o "corporéisme" anunciado na França, nos anos 70, é hoje uma tendência global, investida pela tecnologia, a mais refinada.
Nas clínicas, academias de ginástica e na mídia, a banalização das novas fusões entre o corpo humano e a eletrônica relativizaram tanto o fascínio quanto a aversão tradicionais perante o progresso técnico. Já sabemos que nascemos e morremos desiguais, não é mais novidade refutar a tendência que concede ao corpo um estatuto natural, assim como já virou rotina compreender que as relações entre natureza e cultura são eminentemente históricas. Pensar o corpo deixou, há muito, de ser uma heresia para significar ora um modo de fazê-lo render mais, ora uma forma de conhecer a subjetividade da matéria.
Entretanto, tudo isso não significa que possamos dormir tranquilos. Basta lembrarmos de duas situações do conhecimento de todos e que, entretanto, quando se juntam, parecem transformar a antiga metáfora marxista do vampiro numa realidade otimista!
Primeira situação: o Brasil é um país tradicionalmente exportador de matérias-primas; segunda situação: o Brasil vive numa época em que a matéria-prima do capitalismo não é apenas a força de trabalho, mas, também, as informações genéticas, os órgãos, a pele, em suma, tudo o que no corpo for considerado são.
Por isso, justamente quando se fala tanto em globalização, é preciso saber de que maneira o patrimônio genético e os corpos dos brasileiros integram o mercado global; preocupações desse tipo não são somente de ordem econômica. E mesmo se o fossem, a economia está bastante interessada na realidade corporal, sobretudo em nossos dias. Alguns economistas chamaram a atenção para essa vocação do capitalismo atual em investir em "três esferas infinitas": a gestão da sociedade, a reprodução da Terra (ar, água, vegetais) e a reprodução do humano.
O interesse econômico que o corpo desperta deveria servir para esclarecer à sociedade quais são os grupos que ganham e os que perdem com a transformação das diversas partes do humano em equivalentes gerais de riqueza. Informações como estas podem parecer simples. Mas sem elas voltamos a ficar como o solitário e amnésico dedo de Daoud.

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