São Paulo, domingo, 23 de março de 1997
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La Nave Va

LUIZ GONZAGA BELLUZZO

Muita gente ainda não provou, mas acompanhar as projeções do balanço de pagamentos pode ser um esporte emocionante. As previsões sobre o déficit da balança comercial, por exemplo, começaram o ano cravadas em US$ 8 bilhões. Neste crepúsculo do primeiro trimestre não há quem faça negócio por menos de US$ 10 bilhões, sendo que há liquidez para transações que apostam em US$ 12 bilhões.
Por meio de dois diretores do Banco Central, Francisco Lopes e Gustavo Franco, o governo lançou água à fervura dos mercados, sustentando que, diante das condições favoráveis de financiamento externo, nem mesmo um déficit na conta de comércio de US$ 15 bilhões em 1997 será capaz de causar mudanças na administração do Plano Real.
Em entrevista ao jornal "O Estado de S. Paulo", de domingo, 16 de março, Lopes admitiu que a tranquilidade do governo está escorada na hipótese de continuidade das condições hoje prevalecentes nos mercados financeiros internacionais.
Espera, portanto, que, enquanto a estrutura da oferta doméstica vai se adaptando aos constrangimentos e estímulos da "competitividade" externa, nenhuma surpresa desagradável -elevação das taxas de juros americanas, acima das expectativas, ou mudanças na percepção do "risco Brasil"- nos acorde do sonho da estabilidade com relativa prosperidade. É o que se poderia chamar de otimismo temperado pela experiência.
Já o impetuoso diretor da área externa desdenha os fatos e as possibilidades. É tão irrelevante o desempenho negativo da balança comercial quanto improvável que ocorram mudanças nos humores dos mercados. Sem perder o fôlego, garante que uma eventual subida nas taxas de juros americanas será compensada pela melhoria do "risco Brasil". E, ainda sem trepidar, desafia os céticos: as exportações vão crescer, mesmo sem alterações na política cambial.
Um estudo mais acurado do balanço de pagamentos vai revelar que, além da conta de comércio, outra estrela sobe. A conta de serviços continuará sendo duramente pressionada pelo pagamento de juros, viagens internacionais, cartões de crédito e redução das transferências unilaterais (remessa de dinheiro pelos brasileiros residentes no exterior). Dois terços dos US$ 6,5 bilhões que se acrescentaram ao déficit de transações correntes de 1996 devem ser atribuídos àqueles fatores.
Ainda que se admita um arrefecimento na taxa de crescimento das despesas com viagens e com compras no exterior, é certo que os gastos com juros tenderão a aumentar significativamente. Neste ano eles deverão chegar, em termos brutos, sem descontar os juros que recebemos pela aplicação das reservas, a US$ 14 bilhões.
O resumo da peça é o seguinte: em 1997, na hipótese mais favorável, ou seja déficit comercial "comportado" em torno de US$ 8 bilhões e taxas de juros externas sem grandes alterações, o Brasil terá de captar US$ 35 bilhões para rolar a dívida acumulada e financiar o déficit em transações correntes. Essa hipótese prevê crescimento do investimento direto.
Diante dessas previsões parecem exagerados os otimismos oficiais. O crescimento do déficit comercial para US$ 15 bilhões aumentará, com certeza, a vulnerabilidade da economia brasileira. Mas esse não é assunto para comentadores preocupados. Virou tema para animadores de espetáculos. Esperamos que não sejam a reencarnação dos que comandavam os saraus dançantes do Titanic.

Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo, 54, economista, é professor titular de Economia da Unicamp.

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