São Paulo, domingo, 23 de março de 1997
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UMA CARTA DE PASTERNAK

BORIS PASTERNAK
CARO SR. SPENDER,

escrever para o senhor constitui grande prazer, honra e emoção para mim. Mas também sei do ônus que recairá sobre a pessoa a quem o senhor confiar minha carta, juntamente com a tarefa de extrair algum sentido desta mixórdia e transformá-la em inglês legível -caso se decida usá-la para algum propósito literário.
Não tenho para com o sr. (Edmund) Wilson (que escreveu sobre "Doutor Jivago" para a revista "Encounter", dirigida por Spender) outros débitos senão os de gratidão e admiração. Todo crítico tem o direito de esmiuçar a impressão que lhe causa uma dada obra de arte -e da maneira que lhe for mais costumeira ou preferível. Também a mim chegam pedidos de prefácios e introduções a obras de Blók (na Itália), Tolstói e Liermóntov (nos Estados Unidos) ou Tchekhov (na Índia).
Mas não sou explorador nem erudito. Li muito pouco na minha vida, e muito do que li já esqueci. No caso desses prefácios e introduções, vou me confinar a cartas curtas, transmitindo apenas minhas impressões subjetivas gerais, exatamente como o sr. Wilson fez no meu caso.
Como exemplo, eis aqui o que eu teria a dizer sobre Tchekhov: que sua singularidade como dramaturgo está no fato de haver inscrito o homem na paisagem em pé de igualdade com as árvores e as nuvens; que, enquanto dramaturgo, ele se opôs à sobrevalorização do social e do humano; que o diálogo em suas peças não obedece a nenhuma lógica de motivação, paixão, enredo ou personagens: as deixas e as falas são emprestadas à atmosfera em que são proferidas, efeitos naturais semelhantes aos recantos e aspectos de uma floresta ou de uma campina, a fim de reproduzir a textura espontânea da vida. É essa vida que forma o tema das peças: a vida em seu sentido mais amplo, como cenário único, vasto e povoado, com todas as suas simetrias e dissimetrias, proporções e desproporções. A vida como princípio oculto e misterioso do todo.
Se Tchekhov estivesse vivo e lesse estas palavras, será que estaria de acordo? E por que não conferir ao sr. Wilson a mesma liberdade que dou a mim mesmo?
Mas não acredito que detalhes periféricos de interpretação sejam tão importantes quanto pensa o sr. Wilson. Pelo contrário, sua relativa desimportância tem um significado especial e proposital para mim. Essa desimportância é central para a minha linguagem -é a verdadeira língua do meu pensamento.
Quando pensamos nos grandes romances do século passado -exaltados e idolatrados em sua essência por Henry James; quando examinamos as grandes obras de Dostoiévski, Tolstói, Dickens e Flaubert; e quando extraímos da tessitura de, digamos, "Madame Bovary" todos os itens seguintes, um depois do outro: personagens, seu desenvolvimento, situações, enredo, tema, conteúdo; bem, desta subtração não sobraria muito a uma literatura de entretenimento de segunda categoria, mas em se tratando de "Madame Bovary" -ou de "David Copperfield"- ainda ficaríamos com o aspecto decisivo: a caracterização da realidade como uma entidade quase filosófica, compartilhada universalmente, tomada por todos nós como uma companheira imutável.
A essa realidade, enquanto pano de fundo comum a todos os homens, o século 19 aplicava a incontestável doutrina da causalidade. Acreditava-se que o mundo objetivo era regido por uma cadeia de ferro de causas e efeitos; o mundo moral e material subordinava-se às leis de encadeamento e punição. Quanto mais inflexivelmente um autor ilustrasse essas leis e suas consequências, tão mais realista ele seria. O encanto trágico e cativante de Flaubert ou de Maupassant tem suas raízes na natureza irrevogável de suas narrativas, que são como veredictos ou sentenças acima de qualquer apelo.
Não obstante, sempre me impressionou a idéia de que a existência é mais inexplicável do que qualquer um dos seus incidentes assombrosos. Sempre tive atração pelo que há de pouco usual nas coisas mais usuais. Meu prazer supremo é o de capturar esse sabor de realidade, em recriar essa atmosfera do ser. Que é por sua vez o invólucro, o todo circundante, o meio ambiente último.
Mas há aqui um paradoxo. Enquanto eu especulava sobre o problema de como conquistar para a arte esta noção de uma realidade circundante, o resultado era, se não diametralmente oposto às obras-primas do século 19, ao menos significativamente diferente delas.
Minha noção de realidade -o todo- sempre foi esta: há um propósito, um fim, um "telos", um caminho que se perfaz. Por quê? Por causa de um conhecimento insuficiente dos impulsos externos que produzem em nós os dados sensoriais? Um resquício tardio dos mitos de criação? Um sentimento da magnitude do nascimento e da morte? Seja qual for a causa, a realidade sempre foi para mim algo assim como uma chegada súbita, inesperada e intensamente bem-vinda. Desde sempre venho tentando reproduzir esse sentimento de ser enviado, de ser lançado.
Eis aí tudo o que eu teria a acrescentar -e não a opor- a qualquer leitura de orientação alegórica da minha obra. Atrás e além de todas as miudezas que mereceram destaque e ênfase (apesar mesmo de sua magia distintiva), e mais além dos destinos humanos e dos acontecimentos históricos, há no meu romance um esforço para representar a sequência inteira (fatos, seres, acontecimentos) como uma única entidade em movimento -uma inspiração que se desenvolve, passa, revolve-se, precipita-se. Como se a própria realidade tivesse liberdade de escolha, uma autoconfiguração de inumeráveis variantes e versões.
Daí o reproche de que meus personagens são mal-acabados. Mais que delinear, eu tentava apagá-los. Daí a franca arbitrariedade das "coincidências". Eu queria pôr à mostra a irrestrita liberdade da vida, cuja verossimilhança é contígua à improbabilidade.
Talvez seja por demais precipitado e tolo enviar-lhe esta carta atabalhoada, que não corrigi, reli ou revisei. Tão-somente minha pressa pode justificá-la.

Tradução de Samuel Titan Jr..

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