São Paulo, domingo, 23 de março de 1997
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ASSASSINATO DE ALMA

DAVID MAMET
ESPECIAL PARA A "GRANTA"

A criança estava sentada, com a cabeça nas mãos, se balançando. "...E se você não queria, não devia ter pedido", a mulher falou, "porque você não sabe o que é merecer alguma coisa, não sabe o que é trabalhar para ter alguma coisa". Ela fez uma pausa. "Ou sabe?"
O menino não olhava para cima. E ao que parece a mulher não se preocupava que não. Esfregou um pouco um olho e, enquanto esfregava, sua boca ficou entreaberta. O menino continuava se balançando.
"Escuta bem", ela disse, "quando a gente chegar em casa, sabe o que eu vou fazer? Vou pegar teus brinquedos e encaixotar tudo. E vou despachar para longe. Acha que eu estou brincando?".

As duas outras crianças, o homem pensou, só podiam ser o irmão e a irmã. Olhavam aquilo, não sem algum envolvimento, mas mantendo a distância.
Natural, pensou. Se fosse para tomar uma atitude, o que eles poderiam dizer?

O menino parou de se balançar e levantou do banco, e começou a caminhar, sem dobrar os joelhos, olhando para baixo.
"Aonde você vai?", disse a mulher.
Ele ergueu a cabeça, tímido, para indicar seu destino: uma placa de banheiro masculino, do outro lado da sala de espera.
"...Então por que está caminhando desse jeito?", a mulher falou. "Estou falando com você. Por que está caminhando desse jeito, pelo amor de Deus?"
A boca do menino, por um segundo, fez um movimento como a de um peixe.
"Senta aí", ela disse, "e eu vou te dizer, quando quiser que você vá a algum lugar".
Ele esperou um momento e depois se deixou cair sentado no banco. Ficou com a boca aberta e as mãos cobrindo as orelhas. Baixou a cabeça, até um pouco acima dos joelhos e começou a se balançar de novo.
A mulher se dirigiu aos outros dois. Chamou-os para perto, ao redor da pilha de bagagem e falou baixo com eles.
É isso, pensou o homem. É isso.
Ela indicou a bagagem e apontou para eles, e eles fizeram com a cabeça que sim; indicou o banheiro e fez um gesto com a cabeça e então ela e depois os dois olharam para o outro menino. Ergueu-se rapidamente e se ajeitou e saiu caminhando depressa.
As outras crianças olharam com culpa para o menino e então trataram de se ocupar com seus livros.

Agora é a hora, o homem pensou, e teve essa fantasia: ir até o menino e sentar-se ao lado dele.
"Você sabe quem eu sou?", diria. O menino ergueria os olhos. "Sou seu anjo da guarda. Fui mandado para lhe dizer o seguinte: você não é mau, é bom. Entendeu? Você não é mau, é bom. Só tenho um minuto, mas quero que você guarde uma coisa", diria.
O que dar para ele?, pensou e passou em revista o que tinha nos bolsos.
"Quero que você guarde uma coisa", diria. "É uma moeda mágica. Toda vez que você enxergar essa moeda, toda vez que tocar nela, vai se lembrar magicamente de que não é mau, é bom. Você é bom. Entendeu?"
"Agora, escute bem: um dia você vai perder a moeda. Faz parte do plano. Quando isto acontecer, significa que toda vez que você enxergar qualquer moeda vai se lembrar que é bom."
Na fantasia, o homem botava a moeda na mão do menino e se levantava depressa e caminhava até o terminal.
A fantasia estava acabando, quando ele viu a mulher saindo do banheiro e a viu voltar até as duas crianças boas e viu os três sorrirem e se levantarem e se organizarem ao redor da bagagem e pegarem tudo e começarem a sair dali. Enquanto iam indo, ela se voltou e olhou furiosa para o menino no banco, para lhe dizer, "...Como é?". E o menino se levantou e foi atrás deles.

Tradução de Arthur Nestrovski.

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