São Paulo, quarta-feira, 26 de março de 1997
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Hipocrisia

PAULO TONET CAMARGO

Das questões tormentosas que vêm ocupando a mídia nacional, o modelo penitenciário necessita de urgentes atenções, tanto no que diz respeito à sua concepção arquitetônica como também em relação a uma definição clara e precisa do seu papel social.
Todos os setores do Estado envolvidos com a questão vêm denunciando há muito a caótica realidade que deprime a todos que, de uma forma ou de outra, por dever de ofício ou profissão de fé, adentram as muralhas dessas fábricas de delinquentes.
Sua verdadeira situação é desconhecida da maioria da população, exceto de uma pequena parcela que tem alguma relação com os que lá se encontram, acabando por formar uma opinião sobre discursos ou exteriorizações nem sempre preocupados com o problema na sua gênese e, na maioria das vezes, revelando desconhecimento da realidade que envolve o sistema. Abordemos o tema apenas em uma de suas várias vertentes, levando em conta os conceitos comuns da sociedade.
A maioria das pessoas pensa que a pena é uma forma de vingança social, ou seja, aquele que cometeu um crime deverá pagar por ele e pronto. Essa forma moderna de linchamento sacia a raiva do cidadão de bem contra aquele que vilipendiou a harmonia social.
Passada a raiva e saciado esse primário sentimento humano -e isto, no Brasil, se dá de forma bastante rápida-, resta o infrator encarcerado, em más condições, a expiar uma culpa que a maioria entende já estar expiada. Esquecido, afastado da família, do trabalho e da educação, esse pária social que é o preso retornará à sociedade um dia (porque esse é o mandamento constitucional), ainda pior e a causar certamente males maiores para se vingar da vingança. Sem referenciais éticos, morais, sem qualquer escala de valores sociais, o que dele podemos esperar?
Pior ainda quando acordamos para um fato nunca lembrado. Essa vingança social tem um custo. O Brasil gasta cerca de R$ 60 milhões por mês no custeio das prisões, e esse dinheiro sai diretamente do bolso do contribuinte.
Refletindo sobre o alto custo da vingança, geradora de maior insegurança, vale a reflexão da relação custo-benefício das prisões como remédio usado de forma indiscriminada na aplicação das penas e absolutamente afastado da comunidade de onde veio o apenado e para onde voltará.
Certamente a pena não é e nunca poderá ser vingança, mas deve ter uma efetividade social capaz de recuperar a harmonia quebrada pela ação criminosa, ou seja, servir para que aquele que cometeu o crime não o cometa mais.
Se considerarmos a pena como simples vingança e daí aceitar o fato de que o "inferno" somente produz "diabos", somos forçados a concluir que o cidadão está investindo em sua própria insegurança, ou seja, pagando por um sistema público que produz indivíduos egressos capazes da produção de terríveis atrocidades contra aquele que é a fonte de custeio.
Vem o segundo lugar-comum -colocar todos os presos para trabalhar e custear seu sustento. Partindo-se deste pressuposto correto e importante, pois o trabalho é vital no processo de ressocialização, esquece-se um detalhe importante: quem fornece trabalho ao preso? O Estado? Claro que não, pois este não é gerador de trabalho, e a afirmativa de que se deve colocar o preso a capinar a terra e plantar é irreal -tanto quanto mandar um agricultor trabalhar em lanternagem ou em um torno mecânico. Ínfima parcela da população prisional provém do meio rural.
Voltando à pergunta inicial, o mesmo cidadão que diz terem os presos obrigação de trabalhar não aceita ver os mesmos nem por perto, ainda que não seja propriamente em penitenciárias, mas tão-somente em casas de regime semi-aberto -onde, pela lei, adquirem o direito ao serviço externo, só se recolhendo após o dia de trabalho. Esse cidadão ofereceria trabalho ao preso? Pegaria parte do trabalho de sua empresa e o levaria às penitenciárias para, a custo baixo, ocupar aquela mão-de-obra ociosa? Temo que não.
A recuperação da dignidade, do amor-próprio, da escala de valores como pressupostos de recuperação de uma consciência de cidadania no infrator é a grande ponte entre o crime e a vida em sociedade. Essa ponte, com toda a certeza, não pode ser construída com verbas públicas, e para sua construção o Estado não pode licitar.

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