São Paulo, quinta-feira, 27 de março de 1997
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'Dingo' Dave sofre com o ar puro da Tasmânia

DAVID DREW ZINGG
NA TASMÂNIA (AUSTRÁLIA)

Daqui até o Pólo Sul é um pulinho -uns 3.200 km, apenas. Apesar de seu passado sangrento, a Tasmânia é provavelmente o lugar mais limpo e mais ecologicamente correto do mundo.
O ozônio da Tasmânia, totalmente puro, é um choque para o organismo do velho "Dingo" Dave, acostumado ao ar poluído e carregado de imundícies de São Paulo. A atmosfera é tão límpida que meu corpo repleto de toxinas simplesmente se nega a inalar o produto local. Passo o dia todo tossindo.
Em Sampa, quando a névoa levanta, a gente enxerga a poluição. Aqui na Tasmânia, o que se enxerga é o infinito.
Aeromoças "aussies"
Esses "aussies" são uma espécie diferente de pessoa.
Eu sei que até mesmo as comissárias de bordo devem se cansar de repetir sempre o mesmo palavrório dos conselhos de segurança oferecidos quando o avião decola.
Imagine o prazer e a alegria de "Dingo" quando uma linda e loira aeromoça "aussie" se saiu com o seguinte: "Em caso de emergência, oxigênio gratuito lhes será servido nas máscaras situadas acima de suas cabeças. Se esse seu filho continuar choramingando, experimente encaixar a máscara BEM APERTADA na linda cabecinha dele. Uma boa inalada do oxigênio vai deixá-lo calminho, calminho".
Hino nacional
O hino nacional australiano é um exercício musical complicado. Sua complexidade compete até mesmo com a do brasileiro.
Como acontece com o do Brasil, quem quiser cantar o hino australiano bem -ou simplesmente cantá-lo de qualquer jeito- fará bem em procurar um treinador vocal, daqueles que preparam tenores e sopranos de ópera.
O exercício australiano em ginástica vocal de alta altitude se chama "Advance Australia Fair".
Uma pessoa que recentemente fez uma crítica à difícil canção tensionadora de vozes comentou que "Advance Australia Fair" é o único hino nacional no mundo capaz de fazer "Deutschland Uber Alles" soar como um convite para dançar.
A Austrália, que se transformou num país complexo e multicultural que abriga pessoas de pelo menos 120 diferentes origens nacionais, está pensando em adotar um novo hino, de preferência cantável.
Fala-se muito em colocar uma letra nova na velha e conhecida cantiga australiana "Waltzing Matilda".
O curioso de "Matilda" é que, embora provavelmente seja a primeira melodia que nos vem à cabeça quando ouvimos falar na Cangurulândia, ela nem mesmo é uma composição australiana.
Na verdade, é uma velha canção folclórica irlandesa, de alta qualidade e valor duradouro.
Por falar nisso, alta qualidade e valor duradouro são coisas que parecem vir à mente com frequência quando se fala tanto em irlandeses quanto em "aussies".
"Aussies" irlandeses
Os irlandeses compõem uma parcela substancial da população australiana. Os primeiros deles a desembarcar nestas paragens foram trazidos para cá para cumprir pena, na época em que a Austrália era colônia penal inglesa. De lá para cá, ascenderam muito em termos de posição social.
Muitos deles são corajosos pilotos de aviõezinhos que se aventuram no "outback", o interior bravio e despovoado do país.
Conta-se uma história famosa de um piloto "aussie" irlandês que de repente se viu com problemas. "Mayday, mayday", chamou na frequência de emergência do avião (a palavra é sinal internacional de rádio, indicando pedido de socorro).
O operador de serviço de socorro o ouviu e indagou: "Você pode nos dar sua altitude e posição?".
"Tá bom, meu chapa", respondeu o piloto. "Eu tenho 1,73m de altura e estou sentado no assento do piloto."
Curriculum vitae
As pessoas deste grandioso país são um pouquinho -só um pouquinho- excêntricas.
O que vou contar a seguir é a mais pura verdade, Joãozinho. Juro de pés juntos.
"Dingo" Dave estava sentado num bar em Richmond, Tasmânia, ao lado de uma charmosa jornalista sul-africana à qual daremos o nome de Juliet.
Juliet é aquele tipo de mulher elétrica, totalmente cool, que tende a atrair olhares de admiração dos homens disponíveis.
Um sujeito alto e não totalmente desprovido de encantos ouviu Dingo e Juliet falando de jornais e, como só acontecer em bares, não demorou a se introduzir na conversa.
Questionado, o forasteiro começou por se apresentar como jornalista, também. A paranóia de Dingo rejeitou a hipótese, e eu a manifestei.
Depois de muito manobrar e apresentar explicações diversas, ele terminou por admitir que fazia "outras coisas".
Dingo continuou insistindo em saber que outras coisas seriam. Juliet e eu o pressionamos um pouco mais.
Finalmente o forasteiro tirou seu cartão. Juro que o cartão dizia ipsis litteris o seguinte:
"C. Charles Wilson, Jr.
'Charlie'
Agente especial e pistoleiro de aluguel
Aventureiro, instrumento capitalista, palestrante e atleta de meia-idade
(Nas linhas seguintes, o cartão fornecia um endereço na Califórnia)
Nenhum trabalho é grande demais - Ver outro lado
(A coisa prosseguia no verso do cartão)
Trabalha por hora, por dia ou por noite
Atendimento de emergências * Previsões do futuro * Revelação do passado * Esmagamento de insurreições * Desvelamento de casos de corrupção * Organização de festas * Solução de mistérios * Organização de apresentações a pessoas de seu interesse * Abertura de vinhos * Reavivamento de romances * Escavação e preenchimento de buracos * Identificação de talentos * Críticas de restaurantes * Análise de investimentos * Montagem de exércitos * Realização de fantasias * Lavagem de roupa suja * Término de discussões * Salvação de almas * Aprendizado de lições * Levantamento de ânimos * Execução de planos * Cumprimento de missões * Satisfação dos fregueses".
Agarrei Juliet pela mão e corri para a saída dos fundos, antes que o sr. Wilson tivesse a idéia de cavar um buraco e preenchê-lo.

Tradução de Clara Allain

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