São Paulo, domingo, 30 de março de 1997
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Episódios da eterna intolerância

HÉLIO SCHWARTSMAN
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

"A Saga do Marrano", do argentino Marcos Aguinis, é um daqueles raros romances em que, uma vez iniciada a obra, o leitor fica de tal modo preso à trama que, ou tem vontade de terminá-la sem levantar-se uma única vez da poltrona, ou bem passa a sorvê-la em doses homeopáticas para estender ao máximo o prazer da leitura.
O autor consegue a um só tempo criar uma história envolvente e traçar um retrato bastante fiel do período colonial latino-americano, em especial as perseguições da Inquisição contra os marranos, os judeus (no caso da obra) ou os mouros que se viram forçados a se converter ao catolicismo, mas que secretamente seguiam a religião de seus ancestrais.
A narrativa gira em torno da história do médico Francisco Maldonado da Silva e sua família. Francisco é um cristão-novo que um dia, inopinadamente, fica sabendo de suas origens judaicas. A partir de então, pouco a pouco e em meio a um turbilhão de acontecimentos pessoais, o protagonista começa a travar uma guerra interna de consciência que culminará numa quixotesca batalha externa (o autor é psicanalista, o que explica alguma coisa).
A riqueza de informações históricas do texto é impressionante e não se limita ao período dos acontecimentos. Há desde uma curiosa, mas não necessariamente verdadeira, explicação salomônica para a presença dos judeus numa Península Ibérica ainda céltica até a exposição das raízes da corrupção e da burocracia que até hoje corroem os altos e baixos círculos do subcontinente sul-americano.
Diante do leitor desfilam trechos de, ou comentários sobre, Aristóteles, Pitágoras, Fílon, Hipócrates, Galeno, Maimônides, Plínio, Horácio, Vesálio, santo Tomás de Aquino e muitos outros, além, é óbvio, de questionamentos referentes aos Velho e Novo Testamento, Talmud, Cabala e vários textos religiosos. Para surpresa de muitos, porém, apesar dessa ameaçadora galeria de clássicos empoeirados, a obra não é em nenhum momento aborrecida. Muito pelo contrário até, o autor encontra espaço para uma singela e bem-humorada explicação teológica para a infertilidade da mula: o pobre animal teria escoiceado José durante a fuga do menino Jesus para o Egito, ato que lhe valeu a maldição de não mais ter descendência própria.
Marcos Aguinis também mostra, de forma bem menos risível, como a Igreja Católica, empregando argumentos da mesma cepa do da mula, aceitava a escravidão dos negros, a descendência de Cam, o filho maldito de Noé. Como fosse difícil tentar demonstrar que a ascendência dos indígenas das Américas remontava a Cam, as autoridades civis e eclesiásticas optaram por não escravizá-los; criaram o sistema de mita (trabalho por turno), o que vinha a ser quase a mesma coisa.
No plano religioso, o livro não se limita ao embate entre os católicos e judeus marranos. Há pequenas referências ao movimento de Reforma e uma interessantíssima descrição da religião pré-incaica dos índios do sul do continente, também duramente perseguida pelos inquisidores.
O festival de hipocrisia, ambição e intrigas políticas entre autoridades civis e eclesiásticas seculares, monásticas e inquisitoriais, todas entre si, não necessariamente nessa ordem, é descrito com a mesma riqueza de detalhes com que o autor retrata um auto-de-fé.
É difícil resistir à tentação de reproduzir alguns dos trechos mais significativos do romance, em que toda a simbologia da paixão de Cristo é completamente invertida pelo Santo Ofício e em que o delírio persecutório é posto a nu, revelando-se por inteiro na forma de avidez e sede de poder. A obra, contudo, merece ser lida por inteiro, e destacar algumas aspas seria uma forma de traição (outro tema bastante bem explorado).
Por fim, uma vez que "A Saga do Marrano" consegue escapar ao defeito mais óbvio nesse gênero de texto, a pieguice, seria profundamente injusto terminar esta resenha afirmando que a obra é um hino à liberdade religiosa, de expressão e mesmo de existência (pode até sê-lo, mas sem a palavra "hino", por favor). Ela é antes de tudo um delicioso romance (mas verdadeiro, bem-documentado e extremamente informativo), que vem bem a propósito nestes tempos em que o fenômeno da intolerância pipoca por todos os cantos do planeta, em todas as suas formas, que no fundo não passam da repetição do mesmo.

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