São Paulo, domingo, 30 de março de 1997
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A complexa arte da subjetividade

MARIA RITA KEHL
ESPECIAL PARA A FOLHA

O que fazem os psicanalistas quando se afastam da atividade clínica? A resposta mais frequente é: escrevem. Não sei se para compensar as muitas horas de escuta pontuadas por expressões quase monossilábicas, para varrer um pouco do silêncio que nos impomos para dar palavra aos analisandos ou para dotar de alguma consistência material um trabalho cujo resultado é sempre tão inefável, o fato é que nós, psicanalistas, somos dados a escrever.
Foi o que fez o psicanalista Joel Birman durante o ano e meio que passou na França, entre 1994 e 96, corajosamente afastado de seu consultório no Rio de Janeiro: escreveu muito. Não que a escrita seja novidade para Birman; antes deste "Por uma Estilística da Existência", oito livros seus são conhecidos do leitor brasileiro, desde "A Psiquiatria Como Discurso da Moralidade" (1978) até "Psicanálise, Ciência e Cultura" (1994). A grande diferença é que, se até então seus textos vinham sendo fortemente marcados por um estilo acadêmico -Joel Birman é doutor em filosofia pela USP e professor em duas faculdades, no Rio- neste livro novo, escrito longe da clínica e da universidade, encontramos o autor tentando construir um novo estilo, que eu tomo a liberdade de chamar de ensaísmo literário.
A construção de um estilo como objetivo da cura psicanalítica é, por sinal, tema do artigo de abertura do livro, o mais interessante de todos a meu ver, em que Birman não esconde a implicação de um percurso subjetivo na sua produção teórica. Se a possibilidade da cura em psicanálise passa, como escreveu Freud em "Análise, Terminável ou Interminável?", pelo encontro de novos objetos de satisfação pulsional, isto não significa que esses objetos estejam prontos, ao alcance do sujeito, e muito menos que lhe sejam oferecidos pelo analista -o que produziria, nos alerta Joel Birman, um submetimento masoquista do analisando em relação ao desejo do analista. A cura depende, isto sim, de um ato criativo por parte do analisando, cujo resultado seria a criação de uma estilística da existência. "O sujeito", escreve Birman (pág. 43), "não pode ignorar as exigências das forças pulsionais que se apoderam dele de maneira absoluta e às quais ele deve inventar destinos, tanto eróticos como sublimatórios".
A produção de uma estilística da existência pela via analítica seria, então, "uma maneira para se produzir a singularidade do sujeito a partir das exigências subversivas das forças pulsionais" (pág. 45). Uma dimensão ética está contida nesta proposta, que aponta uma outra saída além do recalque, produtor de sintomas, para o excesso das forças pulsionais. E uma dimensão estética, criativa, que opõe um saber mais feminino à rigidez da ordem fálica. Mas que por ser feminino, escreve Birman, é sempre ameaçador para o sujeito. Quem disse que a cura analítica é fácil?
Não por acaso, no ensaio que encerra o livro -"Ser ou Não Ser Imprescindível: Esta É a Questão"-, o autor desenvolve uma longa reflexão em torno às críticas que recebeu de colegas por se afastar durante tanto tempo de seus analisandos. A análise de um analista é interminável, ela se estende por intermédio da escuta dos analisandos, e abandonar esta posição é uma tarefa que põe em risco não só nossa própria auto-análise quanto nossas frágeis certezas identitárias. Mas isto não nos dá o direito, pensa Birman, de canibalizar nossos analisandos e construir uma fortaleza narcísica em torno da dependência que eles possam ter de nós. "Viver não é preciso", lembra Fernando Pessoa -e Birman abraçou a imprecisão da vida para se renovar.
Por fim, para ser honesta com o autor e os leitores, é preciso apontar que a produção de um novo estilo à qual Joel Birman se lançou como quem se lança ao mar, ainda não se completou. Seu texto ainda oscila entre a liberdade e a academia, e ele se vale de um excesso de bordões como "da ordem de", "neste contexto" etc., que atrasam o andamento da frase revelando uma certa hesitação, compreensível aliás para quem atravessa um período de transição ou de construção estilística.
Nada disso, entretanto, diminui o valor dos ensaios contidos neste livro, que comentam o cinema, as artes plásticas, o ato de leitura e da escritura, articulando a criação artística e a experiência do estilo como dimensões essenciais do saber psicanalítico.

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