São Paulo, domingo, 30 de março de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A voz inaudível de Deus

BENEDITO NUNES
ESPECIAL PRA A FOLHA

Viajante incansável, que visitou a Rússia ainda quando Lênin vivia e que praticou a meditação espiritual nos mosteiros do monte Athos, em sua própria terra, o escritor grego Nikos Kazantzákis (1883-1957), colaborador do governo liberal de Venizelos, estudante de filosofia em Paris no começo do século e a quem se deve a continuação da "Odisséia", de Homero, em mais de 33 mil versos, além dos conhecidos romances "Alexis Zorba", "O Pobre de Assis", "O Cristo Recrucificado" e "A Última Tentação", foi bem um "místico sem Igreja", segundo o definiu José Paulo Paes no esclarecedor prefácio para a sua tradução do poético texto desse cretense, "Ascese - os Salvadores de Deus".
Na tradição monoteísta do cristianismo e do Islã, os místicos, reconhecidamente aqueles que buscam, pela mortificação (ascese), a união com Deus, sempre estiveram ligados a uma igreja, ao sistema de doutrina e culto respeitado por uma comunidade histórica de fiéis, sob a vigilância sancionadora da autoridade religiosa.
São João da Cruz e Santa Teresa d'Ávila viveram essa experiência contemplativa e extática, preparatória da união com a divindade -concebida em sua transcendência ao mundo como um ser pessoal, máxima realidade em toda parte presente- dentro da Igreja Católica, da mesma forma que os místicos sufis, se ainda hoje existem, vivem-na dentro da pura fé maometana.
Também há místicos especulativos; sem se entregarem exclusivamente à experiência contemplativa e extática, identificam-se como pensadores em alerta para o divino, por eles considerado essência e sentido da realidade natural e do mundo, na direção da qual os homens já caminham em vida.
No Ocidente moderno, a expressão "místico sem Igreja" significaria aquele místico dissidente não só de uma fé religiosa, mas de qualquer espécie de religião organizada, mesmo daquelas não-cristãs, como o bramanismo, o budismo e o taoísmo, insitamente místicas, pródigas nas técnicas de ascese. Mais do que num ato de conhecimento à distância (contemplação), o encontro dos místicos católicos maometanos com Deus se daria num ato de participação, saindo de si mesmos (êxtase) para anularem-se pessoalmente no ser divino a que aderem. O "místico sem Igreja" poderia alcançar esse estado sem aprovação da comunidade religiosa ao qual se ligasse ou de que ficasse à margem.
Sempre houve, na cultura ocidental, com o predomínio das autoritárias religiões de salvação, um vínculo muito estreito, senão entre misticismo e dissidência aberta ou camuflada, entre misticismo e heterodoxia, que o extremo Oriente desconheceu. A ortodoxia de São João da Cruz e de Santa Tereza d'Ávila, seguidores, pelo seu particular relacionamento com Deus, de uma excepcional via de salvação, sempre esteve sob a suspeita das autoridades eclesiásticas.
Mestre Eckardt, da vertente especulativa do misticismo, foi condenado "post-mortem" à vista de quarenta e tantas proposições heréticas extraídas, pelos censores inquisitoriais, de seus esplêndidos sermões. Mais livres, mesmo quando, a exemplo de um Radhakrishna, prestam observância a deuses locais, os místicos orientais compartilham de uma concepção imanente da divindade, que lhes permite praticar a ascese como libertação do homem; o êxtase, em seu auge, indicaria que se libertam os indivíduos, libertada a divindade a eles inerente. Em qualquer caso, porém, tanto na tradição monoteísta quanto na imanentista, a divindade é algo real, atual e presente, de que o ser humano participaria.
Nascido membro da Igreja Ortodoxa do Oriente -da qual cedo se desligou, e que lhe recusaria enterro cristão-, Kazantzákis não foi nem dissidente nem heterodoxo. "Místico sem Igreja", no caso particular desse escritor, significa um místico sem religião: o Deus que ele encontrou, fora de qualquer crença religiosa, e de que terá tido o vislumbre contemplativo descrito em "Ascese - os Salvadores de Deus", não é nem atual nem presente. Potencial e futuro, não salva, não redime nem possui a plena e imóvel identidade, que uma só experiência extática pudesse abranger. É uma voz inaudível, como um secreto apelo que nos movesse.
Nisso semelhante à mística oriental, a ascese, que essa voz mobiliza, proporciona o meio de libertação de Deus por intermédio dos indivíduos. São os homens que salvam Deus antes que Deus os salve, numa permanente luta contra si mesmos e contra suas próprias ilusões, prolongando originária pugna do espírito contra a matéria. "Não é Deus que nos irá salvar; nós é que o salvaremos, lutando, criando, transfigurando a matéria em espírito" (pág. 119). A mística, que pode se dissociar das igrejas, também pode, como aqui, associar-se à filosofia.
O pressuposto filosófico desse novo salvacionismo é, por certo, a hegeliana reconciliação da natureza divina e da natureza humana: a humanização de Deus e a deificação do homem, cujas sementes, no idealismo germânico, os ousados místicos especulativos plantaram. Os homens precisam de Deus, mas Deus também precisa dos homens, dissera Mestre Eckardt numa de suas proposições censuradas. "Nada me parece elevado; eu sou o alto cimo. Pois até Deus, sem mim, por si mesmo, não representa grande coisa", proclamou Angelus Silesius no aforismo 240 de seu "Peregrino Querubínico".
Para Kazantzákis, a voz de Deus, que surde em mim, tal como admitiriam esses dois místicos heterodoxos, transmite, em vez de apelo ou ordem, um grito de socorro, ressoando como impulso libertário. Atendê-lo é atender ao clamor da liberdade e lutar por ela. Lutando pela liberdade, liberamos Deus; libertá-lo é fazer com que ascenda numa grande marcha do espírito humano.
Quando o fazemos ascender, nós também subimos e nos libertamos; homem e Deus tornam-se companheiros de batalha; ninguém pode se salvar, se antes não o salva, lutando por ele e ao lado dele. "A vida é o serviço militar de Deus. Querendo ou não, partimos em cruzada para libertar não o Santo Sepulcro, mas o Deus sepultado na matéria e em nossa alma" (pág. 119). Não há cruzada sem adversário; um exército luminoso combate outro, obscuro. São recorrentes, no vocabulário de Kazantzákis, os termos opositivos; os exércitos inimigos, o da sombra e o da luz, são também forças antagônicas -corpo e alma, matéria e espírito, cujo embate favorece a libertação do divino, tanto no homem como no cosmo todo, da gota d'água às galáxias. Não seria despropositado aventarmos, depois das ligações indiretas do pensamento de Kazantzákis com Eckardt, Angelus Silesius e Hegel, a subsistência nele de um profundo veio gnóstico, abastecido pelo maniqueísmo.
Gnóstico pela visão de uma recíproca gênese do humano e do divino, Kazantzákis retoma a pugna, que os maniqueus admiram, entre um princípio material obscuro e um princípio espiritual luminoso, como um conflito cósmico, de que o homem é o decisivo intermediário. No maniqueísmo, conforme sobejamente nos mostram os até agora insuperados estudos de Henri-Charles Puech, a divindade, uma vez libertada como espírito aprisionado no corpo, põe-se no mesmo plano ascensional que o homem. Mas esse plano ascensional é suportado por uma relação positiva dualista: o princípio obscuro, a matéria, que sem a ascese obstruiria a subida do espírito, é a este inferior, enquanto substância de baixa origem (uma força diabólica, demiúrgica, contrária ao Deus Uno, e que os gnósticos, sem exceção, identificaram ao Jeová bíblico).
Tal estrutura de pensamento, peculiar à gnose, recebeu-a o escritor não das fontes sincréticas do séc. 2 d.C., e sim da doutrina de Bergson (Kazantzákis foi o tradutor de "O Riso"), sobretudo da síntese do dualismo com o evolucionismo de "A Evolução Criadora", que foi, talvez, uma das últimas formas do gnosticismo em nossa época.
Em "Ascese - os Salvadores de Deus", o espírito se confunde com o bergsoniano "élan original", criador, força cósmica violenta, obstado e desviado pela matéria inercial, e que pode, depois de atravessar plantas e animais até chegar ao homem, abrir, precisamente com o apoio dos místicos, por Bergson denominados de "adjutores Dei", um novo caminho evolutivo, superador dos indivíduos, de acordo com o ensinamento da obra tardia do filósofo, "As Duas Fontes da Moral e da Religião".
Sob o ângulo desse evolucionismo, o desenvolvimento humano, ritmado pela Natureza, em que a destruição se alterna com a criação, se ajustaria, dando a tônica supra-ética do misticismo, ao preceito do Tao Te King: "Céu e terra não são bondosos/ Para eles os homens são como cães de palha destinados ao sacrifício". Dessa forma, a luta pela liberdade, atendendo ao grito de socorro da recôndita divindade, flagela os participantes de uma inclemente batalha amorosa. "Um amor violento trespassa o universo" (pág. 124). Sem violência, sacrificando os indivíduos, não haveria ascensão.
O sacrifício dos indivíduos, em proveito da evolução espiritual da espécie, sintoniza, por mais que Kazantzákis a tivesse desconhecido, com a concepção idealista de Ernest Renan, a qual aceitaria que os místicos formassem, juntamente com artistas, filósofos e cientistas, no "mais belo emprego do gênio", o serem "cúmplices de Deus", a corrente condutora da flama do ideal, sobreposta à inércia da matéria e ao mecanismo causalista da Natureza. "Nós trabalhamos a serviço de um deus, tal como a abelha, sem sabê-lo, faz seu mel para o homem", escreve Renan num de seus "Dialogues Philosophiques".
Para Kazantzákis, porém, o trabalho, que Renan qualificou de "évolution déifique" (evolução deífica), faz o doce-amargo mel da ação, sujeita somente a duas regras de conduta, acima das limitações dos sistemas morais: a aceitação do sacrifício e a total responsabilidade pelos nossos atos.
Supra-ético, o misticismo do nosso autor-poeta é ativo, até mesmo revolucionário e não-contemplativo; o ascensional processo da mútua salvação de Deus e do homem, que puxa a Natureza para cima, ao lado da cultura, se concretiza historicamente. "Sinto profundamente", registraria Kazantzákis em "Carta a El Greco", sua autobiografia -postumamente publicada na década de 60 e assentando, como todos os dramas e romances, na lição do prematuro "Ascese", concluído em 1926-, "que um homem que luta sobe da matéria bruta às plantas, depois aos animais, dos animais ao homem e combate pela liberdade. Em cada época crítica, o homem que luta assume uma nova fisionomia; hoje ele é o chefe da classe operária que sobe". Já o seu romance "Toda-Raba" (1929), pouco conhecido, considerava a Revolução Soviética como "a aparição invisível da revolução cósmica que se prepara em nossos corações". Lênin seria, então, um dos salvadores de Deus, ao lado de Cristo e Buda.
Desse ponto de vista histórico, a ascese toma o vulto de uma contraditória depuração pessoal em prol do impessoal: mortifica a inteligência, aceitando-lhe os limites e rebelando-se contra eles; confia nos impulsos irrefreáveis do coração e apaga toda esperança, antes de libertar-se o indivíduo do Eu em proveito do povo ou da raça, em seguida superados pela humanidade. E dela também deverá libertar-se, identificando-se afinal com "o homem inteiro, universal, que luta", na incerteza da vitória.
"Somente isto constitui a dignidade humana: viver e morrer corajosamente, sem aceitar nenhuma recompensa", confessa Kazantzákis no penúltimo capítulo de sua autobiografia. Assim o êxtase desse místico ativo, sem igreja, se dá, na paragem da ação, contemplando o abismo de encontro ao qual a dignidade humana se equilibra, agônica, numa trágica dança de resistência à sedução do além-mundo -também dança sacrificial de aceitação da vida-, que o "Assim Falava Zaratustra", por ele traduzido, lhe ensinou a heroicamente dançar.
Só se pode compreender que Nietzsche, o grande contestador da tradição ascética, tenha influído sobre o autor de "Ascese", sabendo-se, de antemão, que este, um iconoclasta do pecado, um subversor do desprezo monacal do corpo, também quebrou as tábuas da moral hebraico-cristã e substituiu, tal como fez o outro, em nome de um conceito aristocrático do espírito -que não alijava, porém, "os esfomeados, os inquietos e os vagabundos"-, o amor ao próximo pelo amor ao remoto.
"O homem é uma corda estendida entre o animal e o super-homem -uma corda por sobre um abismo", assim começa a primeira pregação do Zaratustra de Nietzsche. Mas o abismo do poeta grego já é, em consonância com a primeira teologia negativa -que foi helenística-, um dos nomes de Deus. E o super-homem, nem extra-humano, nem acima do humano, seria, na visão transindividual de Kazantzákis, herdada de Nietzsche, em vez do homem em sua generalidade, objeto do humanismo tradicional, a sofrida paixão que o devora, exaltada por um Saint-Exupéry depois de Gide.
No combate pela salvação de Deus, "o Combatente não se interessa pelo homem, mas pela chama que o consome", finalmente brilhante em Odisseu, a última encarnação dos "salvatores Dei". Humanizando Deus e divinizando o homem, a luta desse herói trágico incorporaria a simbologia da viagem intérmina, tema da continuação da "Odisséia" de Homero, em milhares de versos.
Sob essa derradeira luz, a Odisséia de Kazantzákis, outro ramal poético de "Ascese", também é teodicéia -justificação do homem a partir da justificação de Deus.

Texto Anterior: A complexa arte da subjetividade
Próximo Texto: UMBERTO ECO; PSICANÁLISE; TRADUÇÃO; JORGE AMADO; LITERATURA; THOMAS MANN; SOCIOLOGIA; ARTE
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.