São Paulo, domingo, 30 de março de 1997
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Luxo

HANS-MAGNUS ENZENSBERGER
DE ONDE VEM PARA ONDE VAI

Continuação da pág. 5-4

Com uma guinada desconcertante, o feitiço, aqui, volta-se contra o feiticeiro. O apologista do luxo reporta-se justamente àquele postulado de igualdade que seus críticos costumavam avançar contra ele. E em seu jovial materialismo ele insiste num elogio do consumo ilimitado, que não se intimida diante de nenhuma consequência hedonista:
"Como então o objetivo supremo do homem é o bem viver fundado no bem-estar duradouro, o governo tem, no tocante ao luxo, apenas o dever da restrição, quando alguém corre o risco de, por intermédio do mesmo, decair na condição do bem-estar.
O luxo não é, assim, uma prerrogativa exclusiva do rico, cada homem pode valer-se dele segundo suas condições patrimoniais, a fim de embelezar a vida por meio dos vários estimulantes possíveis que lhe são franqueados.
As queixas frequentes dos nobres e ricos sobre os progressos e desvantagens do luxo parecem ter surgido, portanto, em grande parte, de um sentimento maligno e misantropo e do orgulho e da inveja da classe inferior do povo, na medida em que os estamentos superiores não logram ainda se habituar ao bem-estar das classes inferiores, ampliado de forma inegável pelo progresso da indústria".
Com admirável decisão, esse autor guilhermino opõe-se a uma crítica cultural que nos soa conhecida. Ele se ergue contra ela com uma suspeita que, até hoje, não perdeu sua força.
À análise econômica da produção do luxo soma-se ainda um outro mérito. Ela também deu cabo da idéia originária de que se trata, quanto à oferta e procura, à produção e consumo, de um puro jogo de soma zero, e de que a exigência por justiça pode ser aplacada pela mera distribuição.
No repúdio a essa idéia fixa, Karl Marx estava, aliás, plenamente de acordo com seus adversários burgueses, ainda que os mais parvos entre os seus discípulos nunca o tenham querido admitir. Na imagem de um bolo de tamanho fixo que cabe apenas ser repartido uniformemente, os bens materiais deste mundo não são sequer concebidos, ainda que a crença nesse modelo não deva ser, evidentemente, destruída. O que quer que se possa pensar do luxo, a sua história demonstra de todo modo o contrário.
Isso já se revela na mudança permanente de suas manifestações. O conceito de luxo é tão relativo como o de pobreza. Não faz muito tempo, bens como açúcar e vidro, veludo e luz, pimenta e espelho eram privilégio de uma pequena minoria de poderosos e abastados na Europa. Que muito daquilo que hoje corresponde ao padrão óbvio de um operário de construção ou de uma cabeleireira não estivessem à disposição de um príncipe do passado é um daqueles lugares-comuns que dariam pano para mangas, se os tomássemos ao pé da letra.
Mas, tampouco, as teorias materialistas explicam tudo. Elas sempre subestimaram o poder simbólico do luxo. Elas não viram que ele representa um momento propulsor não só da evolução econômica, mas de toda evolução.
Já aos biólogos do século 19 saltara à vista que o desperdício cumpre um papel subjugante não só na sociedade humana, mas também na natureza. O excedente quantitativo e qualitativo que reina na natureza dificilmente é explicado por cálculos de utilidade de coeficiente zero. Os teóricos da evolução suam para interpretar em sentido darwinista o exorbitante jogo de cores das borboletas tropicais ("luxuriar" é, por sinal, um conceito da terminologia botânica).
O dente do narval atinge um comprimento de dois a três metros; ele é extremamente artístico e sempre retorcido em espiral no sentido anti-horário; sua posição também é sempre à esquerda, ao passo que o dente da direita, que lhe é simétrico, atrofia. Por que isso ocorre e para que ele serve é desconhecido. Resignados, os zoólogos concluem que se trata de um "puro ornamento de luxo dos machos", "que nada lhes rendeu senão a perseguição dos homens". De fato, o dente de narval foi venerado, antigamente, como chifre milagroso de poderes curativos e cotado a milhares de táleres, pois lhe eram atribuídos os efeitos mágicos do lendário unicórnio. Enigmáticas são também as presas recurvas do mamute siberiano, já que não contribuíram para a sobrevivência da espécie, mas, antes, para sua extinção. O luxo da natureza é, assim, um osso duro de roer para os dentes da ciência.
Saber se as inclinações do homem remontam a raízes biológicas -essa questão, ao fim e ao cabo, tem de permanecer aberta. Contudo, é natural buscar analogias sociais para os dispendiosos caprichos da natureza. Os etnólogos modernos não fizeram por menos. Seu exemplo mais célebre, ainda que sumamente controvertido, é o "potlatch". Trata-se de um ritual indígena do noroeste da América. Clãs concorrentes dos "kwakiutl" e outras tribos teriam nele dizimado, de modo espetacular, os seus recursos mais valiosos. Era havido como ganhador de tais torneios quem mais esbanjasse.
Novas investigações lançam dúvidas sobre o teor de realidade desse costume. Mas, mesmo que se revele que o "potlatch" é somente um mito científico, o caso estará longe de ser esgotado; ele continuará a rondar a fantasia dos europeus, como antes, na Idade Média, a lenda do unicórnio. Ele nos é convincente, pois ilustra o simbolismo do desperdício. O "potlatch" deixa claro que todo consumo ostensivo é uma demonstração de poder e mostra que o esbanjamento com luxo sempre dependeu de espectadores que se deixam impressionar.
Georges Bataille (escritor e pensador francês, 1897-1962) foi quem aguçou ao máximo a interpretação filosófica do luxo. Não por acaso, ele já tinha às costas uma longa carreira como etnólogo quando começou a refletir sobre "A Noção de Dispêndio" e "A Parte Maldita". Como lhe era do estilo, ele chegou a uma conclusão radical: "A história da vida na Terra é, sobretudo, o efeito de um excesso absurdo: o acontecimento dominante é a evolução do luxo, a produção de formas de vida cada vez mais dispendiosas". Não é preciso partilhar da metafísica do desperdício de Bataille para dar-lhe razão num ponto, a saber, que apesar de toda a pobreza, jamais existiu uma sociedade humana que pudesse viver sem luxo.
Pode-se mesmo afirmar com boas razões: jamais se poupou menos do que em tempos nos quais a fome era algo de todo corriqueiro. Justamente sociedades tradicionais, a que sempre pesou a ameaça da carestia, ostentaram um fausto insensato em suas festas. Decisivo para tanto não foram o narcisismo e a megalomania dos dominadores, mas a necessidade de representação.

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