São Paulo, domingo, 30 de março de 1997
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Luxo

HANS-MAGNUS ENZENSBERGER
DE ONDE VEM PARA ONDE VAI

Montesquieu é breve: 'Sem luxo não há como. Se ricos não gastam em profusão, pobres morrem de fome'; e Voltaire reduz o problema a um epigrama: 'O supérfluo é altamente necessário'

Sua diatribe tem, porém, um motivo concreto. Como ministro das Finanças, Sully volta-se contra o plano, então emergente, de introduzir em grande estilo a cultura da seda na França. Neste projeto já pulsa a idéia da grande manufatura, que viria a se desenvolver mais tarde, sobretudo em Lyon, tornando-se o motor da industrialização.
Bons cem anos após a publicação das "Mémoires des Sages et Royales Economies d'Etat", o abade Coyer escreveu um panfleto que pode ser lido como uma refutação de Sully. "O luxo equivale ao fogo na medida em que pode tanto aquecer quanto consumir. Se, por um lado, ele arruína casas abastadas, por outro mantém vivas nossas manufaturas. Ele devora o patrimônio do perdulário, mas também alimenta nossos trabalhadores... Caso se quisesse cominar o desterro à nossa seda lionesa, a nossas ourivesarias, a nossas tapeçarias, a nossas rendas, a nossos espelhos, a nossas jóias, logo eu veria avizinharem-se os resultados: de um golpe, milhões de braços jazeriam improdutivos, e o mesmo tanto de vozes erguer-se-ia a clamar por pão."
Montesquieu, em seu "Do Espírito das Leis", é mais breve: "Sem luxo", diz ele, "não há como. Se os ricos não gastam em profusão, os pobres morrem de fome". E Voltaire reduz o problema a um epigrama: "O supérfluo é uma coisa altamente necessária".
Tais afirmações podem dar a impressão de ingênuas ou de ligadas em curto-circuito, mas impelem a polêmica sobre o luxo a um passo decisivo. Na verdade, elas não põem em xeque as objeções dos moralistas. Diderot, por exemplo, contradiz com decisão: "O luxo arruína os ricos e duplica a miséria dos pobres", e Condorcet lhe dá razão: "Ele sacrifica a vida e as necessidades dos pobres às imaginações dos que são mais fortes e mais ricos". Mas a essa crítica obrigatória opõem-se, então, pela primeira vez, argumentos econômicos que não são tão fáceis de descartar, porque repousam num cálculo racional. Semelhantes reflexões foram incrementadas em nosso século adentro. Em seu livro sobre o surgimento do mundo moderno a partir do espírito do esbanjamento (1913), Werner Sombart pôde defender a tese de que o próprio luxo teria, na verdade, engendrado o capitalismo.
Essa foi, sempre, a visão da burguesia ascendente. Assim, lemos numa enciclopédia de 1815, com desarmadora bonomia: "Luxo, fausto ou opulência, é, como consequência da riqueza, o pendor e o empenho pelo embelezamento da vida e pelo enobrecimento da sua existência, por meio do invento e da utilização de estimulantes sempre mais novos, belos e graciosos para brilho, ornato, enfeite e delicadeza artificialmente concebida no bem viver diário, em consideração a aposentos e à atmosfera destes, a vestuário, carruagens, cavalos, louçania, criadagem, refeições, bebidas e ainda muitos outros agrados e outras comodidades", uma enumeração à qual, mesmo hoje, é difícil ajuntar algo.
O autor anônimo segue com uma definição ousada, que parece surpreendente no apogeu do idealismo alemão: "Neste sentido, o luxo não se torna apenas altamente útil e necessário, na medida em que facilita o objetivo do homem, a prosperidade física, mas também difunde essa prosperidade à maior massa humana possível e, portanto, contrabalança a desigualdade patrimonial desvantajosa à prosperidade comum da nação".

Continua à pág. 5-5

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