São Paulo, domingo, 30 de março de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Padrão de vida caiu no pós-comunismo

ARTHUR NESTROVSKI; NELSON ASCHER
DO ENVIADO ESPECIAL

Atarefado, o presidente Gõncz não teve condição de responder a todas as perguntas da Folha. As perguntas não respondidas -e outras tantas- foram assunto, então, de uma conversa com o porta-voz da Presidência, András Faragó. Ex-jornalista econômico, Faragó já acompanhou o presidente em visitas a mais de 45 países e fará parte também da comitiva que chega ao Brasil na terça-feira.
(ARTHUR NESTROVSKI)
Folha - Szabolcs Fazakas, ministro da Indústria, Comércio e Turismo da Hungria, declarou recentemente que a economia húngara está "muito mais saudável" hoje do que há dois ou três anos. No entanto, o déficit comercial deva chegar a US$ 3 bilhões em 1997, e a renda per capita vem sofrendo uma queda acentuada. Em que sentido, então, pode-se dizer que a economia está mais saudável?
András Faragó - É uma pergunta muito diferente das suas perguntas sobre literatura... (risos). A economia húngara está em processo de recuperação. Em 1995, estávamos em condições muito difíceis. O padrão de vida caiu 12%; foi um remédio muito amargo. Em 96, caiu mais 4%. Como falar de uma economia mais saudável?
Em primeiro lugar, vê-se uma mudança importante com relação à dívida externa: estamos pagando muitos compromissos assumidos. A Hungria está subindo na lista de bons pagadores.
Em segundo lugar, há mudanças não menos radicais com respeito à capacidade industrial e às exportações. Estamos exportando cada vez mais e importando cada vez menos. Alterou-se também a estrutura do trabalho industrial: a qualidade dos produtos é cada vez melhor; a variedade é maior. Isto contribui até para o turismo, que também está crescendo. O balanço geral dos pagamentos está melhor.
Folha - E o desemprego?
Faragó - Está um pouco abaixo de 10%. E diminuindo. Tudo isto é um lado, apenas, do panorama econômico; indicadores como PIB (a soma das riquezas produzidas pelo país) e balança comercial estão bem melhor hoje do que, digamos, há três anos.
Mas é só um lado do problema, naturalmente. Se você me perguntar sobre o padrão de vida da população, serei obrigado a reconhecer que a população não tem como sentir essa melhora. Salários, infelizmente, estão mais baixos.
A Hungria, agora, pode ser dividida em duas camadas: os ricos e os pobres. Não é diferente dos problemas que vocês conhecem, no Brasil. Ou melhor, há uma diferença, sim: o tempo. Vocês lidam com isto há mais tempo e estão alguns passos à nossa frente.
Folha - Uma mudança de regime como a que a Hungria passou não se resolve em cinco anos.
Faragó - O cidadão húngaro viveu 40, 45 anos vendo o seu padrão de vida sempre subindo. Você pode imaginar o choque, agora, para as pessoas? No ano passado, o país inteiro parou por três minutos. Não foi propriamente uma greve, só uma paralisação. E o fato de não ser uma greve indica, a seu modo, uma consciência universal da necessidade de promover mudanças, o que é muito importante.
Folha - Muitos analistas, dentro e fora da Hungria, têm criticado o sistema de seguridade social, tocando em questões como a criação de políticas locais de auxílio à pobreza, a exclusão de membros idosos das cooperativas agrícolas e a discriminação contra os ciganos.
Faragó - É verdade, por exemplo, que o sistema antigo garantia, em tese, livre acesso aos serviços de saúde. Agora veja: a Hungria, no ano passado, canalizou nada menos do que 27% do PIB para o sistema de seguridade social. Compare este número, digamos, com a Suécia, que tem a maior porcentagem de gastos sociais dos países do Primeiro Mundo: 23%. Em números absolutos, as quantias podem não ser as mesmas, mas o que vale é a proporção.
Isso não significa que o sistema de saúde não tenha de ser fortemente alterado. Também temos de mudar a política de aposentadoria. Aposentadoria integral era concedida durante o regime antigo, mas não se pode esquecer que os salários eram dez vezes menores. Temos de lidar com esse problema, mas o processo é longo. Quinze anos, talvez.
Gostaríamos de chegar ao padrão dos países da União Européia. Governo, trabalhador e empregador dividem a conta. Se você quiser uma aposentadoria maior, pode contribuir mais.
Folha - Como funciona, agora, o sistema educacional na Hungria?
Faragó - No regime socialista, a educação era gratuita, do início ao fim. Hoje em dia, ainda é virtualmente assim, mas, passo a passo, o ensino universitário deverá se transformar num sistema pago. Provavelmente, um sistema de crédito educativo, que ainda precisa ser desenvolvido. É muito importante que cada estudante pague, de alguma forma, por sua educação. Dessa forma, os estudantes terão inclusive mais controle sobre a sua universidade e seus professores. E as universidades, de sua parte, devem se tornar financeiramente mais independentes, menos ligadas ao governo. Mais uma vez, estamos falando de um processo de 10 ou 15 anos.
Folha - Agora que não existem mais as instituições oficiais de apoio à cultura, o governo financia de alguma forma as artes?
Faragó - As coisas mudaram 180 graus em relação ao passado. Antigamente, havia um fundo de apoio à literatura, e todo escritor que cantasse laudas ao Estado e ao partido recebia seu quinhão. Infelizmente, talvez, o governo cortou integralmente o apoio às artes.
O financiamento, agora, provém das fundações particulares. O governo pode ajudar com os primeiros passos, emprestar algum dinheiro, no início, por exemplo. Mas, depois, é cada um por si, o que traz problemas, é claro. Não há gente o bastante, na Hungria, com fundos disponíveis para financiar a cultura.
Se você falar com seus amigos escritores eles vão lhe dizer, na certa, que o dinheiro não é o bastante... (risos). Também não é fácil garantir um bom retorno do investimento. Mas não se esqueça de que a Hungria sempre teve muito orgulho de sua música, sua literatura, suas artes. Não paro nunca de receber convites para concertos e exposições, promovidos por essa ou aquela fundação -acompanhados de um pedido gentil de compra de ingresso, para ajudar.
Folha - Qual é o tamanho da dívida externa, hoje?
Faragó - Aproximadamente US$ 40 bilhões. Você pode imaginar a possibilidade de pagar a dívida rapidamente...
Folha - Como os húngaros estão lidando com aspectos menos glamourosos de um regime capitalista à ocidental, como, por exemplo, o aumento da criminalidade? Que medidas o governo tem tomado?
Faragó - A primeira causa do aumento da criminalidade é bem conhecida: depois da mudança de regime, a fronteira húngara tornou-se muito acessível. Muita gente pode entrar na Hungria sem visto. Não temos ainda um sistema eficaz, equivalente ao dos países da Europa Ocidental, para controlar o trânsito na fronteira.
Comparada aos outros países da Europa Central, a Hungria, em 1989, estava na melhor situação e com a sociedade civil mais bem organizada. Hoje em dia, criminosos e delinquentes dos países vizinhos -prefiro não mencionar nenhum, especificamente- vêm se congregar na Hungria. Preferem a Hungria à Albânia, por exemplo, o que não é de surpreender. Você escolheria a Albânia?
Folha - Certamente não por estes dias.
Faragó - A primeira coisa que precisamos fazer é estabelecer canais eficientes de comunicação com outras organizações, de outros países: FBI (polícia federal dos EUA) e assim por diante. Esse problema não é só nosso, é uma questão internacional. Isso fica muito claro no caso do tráfico de drogas, ou no comércio de carros roubados. Além disso, precisamos de um sistema bem mais moderno de controle nas fronteiras, o que estamos tentando.
Folha - A impressão que se tem é que tudo na Hungria, um dos países mais antigos do continente, é, paradoxalmente hoje, muito novo; tudo está para ser feito.
Faragó - Sim, sim. E não esqueça que a cortina de ferro também tinha pontos positivos, para ajudar a resolver certos problemas. A rota das drogas, por exemplo, passou a incluir a Bósnia, entre outros países, depois da abertura.
Folha - Para os brasileiros, tão longe da Europa Central, a imagem da Hungria ainda está muito associada à do Império Austro-Húngaro e à esfera de influência alemã, de maneira geral. Desde a virada democrática, em 1989, até que ponto aumentou a influência americana no país?
Faragó - Caminhando pelas ruas de Budapeste, você com certeza viu os cartazes do McDonald's, Burger King e Pizza Hut (risos). É um sinal dos tempos. Também deve ter notado a predominância de filmes americanos em cartaz. A Hungria tem uma relação muito forte com a cultura anglo-americana, não só americana, inglesa também. Isso traz consigo muitas coisas boas e outras ruins. A influência da língua e literatura inglesas é muito forte, hoje.
Folha - A Hungria interrompeu unilateralmente a construção de uma hidrelétrica no Danúbio, em colaboração com a Eslováquia -obra que alteraria o curso do rio, alterando portanto a fronteira entre os dois países. Questões de território são muito espinhosas nessa região, especialmente para a Hungria, desde o Tratado de Trianon (quando a Hungria perdeu 65% do território e 70% da população, em reparação pela guerra). Em que pé estão as negociações?
Faragó - Estamos aguardando a decisão do tribunal internacional de Haia. Espero sinceramente que os dois governos cheguem a acordos mutuamente benéficos, e espero que minha geração ainda possa ver isso acontecer.

Colaborou Nelson Ascher

Texto Anterior: HISTÓRIA
Próximo Texto: TRECHOS
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.