São Paulo, domingo, 30 de março de 1997
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TRECHOS

ÁRPÁD GÖNCZ

Como é que se pode reconhecer meu contemporâneo, o húngaro "anônimo" de 60 ou mais anos? Tentemos esboçar seu retrato como, no caso de criminosos anônimos, a polícia costuma fazer, seguindo as descrições, às vezes concordantes, às vezes contraditórias, de testemunhas oculares. Este húngaro já terá perdido automaticamente cerca de seis anos de sua vida, anos que devia ao diabo e cuja marca ele exibe em duas rugas cavadas no canto da boca. Ainda assim, se teve sorte e não foi enterrado, já morto, no chão gelado da Ucrânia, se, entre batalhas ininterruptas, caminhou, calçando botas precárias nos pés congelados, cerca de 1.200 léguas e, sem ser capturado, voltou para casa onde, se é que os tinha, esperavam-no mãe, mulher e filhos -se é o que esperavam.
Ainda assim, antes que se passassem quatro anos, tiravam-lhe terra, casa, estatizavam seu local de trabalho, despejavam-no de seu apartamento, ele fugia de sua aldeia e, ou traía a fé, as convicções políticas, a pátria, ou se achava num campo de trabalhos forçados e, quando solto, podia começar tudo de novo, podia ficar cuidando de sua "alma" na emigração interior. Assim, se mais nada lhe aconteceu, ele desperdiçou em seu país -sem ter sido prisioneiro de guerra- outros cinco ou seis anos na miséria, na prisão e no recomeçar. Caso não tenha se rendido, ele aprendera, no entretempo, a mentir fluentemente -em legítima defesa. Até a morte de Stálin.
Então -aos poucos- a neblina começou a dissipar-se, e, em 1956, o povo se insurgiu, estourou a revolução que, na alma do húngaro anônimo, ligava-se indissoluvelmente às memórias de 1848, quando seus ancestrais conquistaram -confrontando as armas do imperador austríaco- a independência de seu país e estabeleceram a primeira república democrática húngara. Que foi esmagada então pelas tropas do czar russo exatamente como, em 1956, o Exército Vermelho de Khruschov esmagaria a segunda. Depois disso, o húngaro anônimo, se não tombou em batalha com uma dezena de milhar, se não fugiu com outros 200 mil, se não foi encarcerado ou internado com mais 8.000 nem enforcado com outros 400, voltou silencioso à sua emigração interior. Em legítima defesa. Ou, desanimando-se do futuro, mergulhou na bebida, teve um enfarte, desgastou-se: morreu antes do tempo.
No final dos anos 70 a neblina começou novamente a dissipar-se. A maioria não mais acreditava no que via, mas houve entre os anônimos quem se pusesse a produzir uma literatura clandestina, o "samizdat", e pagasse o preço disto sob a forma da casa vasculhada ou do espancamento com cassetetes de borracha. Começou a longa e, embora não sangrenta, amarga luta que só terminou (esperamos) definitivamente com as recentes eleições e -tenhamos fé- com a vitória não da miséria, mas da liberdade. O húngaro anônimo exibe também no rosto, como se fosse um sinal característico, a marca dessa luta. É fácil, por meio dela, reconhecê-lo.
Esta descrição será também a minha? Sou filho de mãe húngara -cujo lugar de nascimento fica hoje na Romênia- e de pai húngaro -cujo lugar de nascimento fica hoje na Iugoslávia. O pai de minha mulher era húngaro -o lugar onde nasceu fica hoje na Tcheco-Eslováquia (*). Todos eram refugiados. Para mim foi mais simples -eu conhecia a desumanidade o bastante para saber já nos meus tempos de estudante (eu fiz Direito) qual era meu lugar. Os pais de meu melhor amigo, fechados num vagão de gado, foram deportados para Auschwitz; ele mesmo -o único santo que encontrei na minha vida- foi submetido a trabalhos forçados onde a morte o esperava, mas, embora pudesse, não fugiu, preferindo compartilhar o destino de seus companheiros e, até morrer, não falou mal de seus algozes. Não é meu caso. Eu não sou santo: fui convocado, fugi, peguei em armas contra os nazistas, fui ferido e tudo isso determinou automaticamente meu lugar na reconstrução, após a guerra, da democracia húngara. Que não chegou viva a seu quarto aniversário, porque, na tenra infância, Stálin e a Guerra Fria a mataram. E mataram também, ao que parecia, meu futuro bem como o de tantos outros -e anônimos- húngaros.
Quem quer que tenha arriscado uma vez a pele pela democracia era suspeito: haveria de arriscá-la de novo. A revolução de 56 acabou com meus estudos. Também dessa vez eu tive sorte: fui novamente testemunha de tanta desumanidade que não podia deixar de buscar -com meus amigos- alguma saída política, um compromisso sóbrio e um modus vivendi com a União Soviética, para que não se repetissem os oito monstruosos anos precedentes. Nossa tentativa não teve sucesso.
Vieram em seguida os meus seis anos, anos que eu, conforme julgava então, devia ao diabo. Num julgamento secreto e a portas fechadas, fui condenado, por processo sumário e sem direito a recurso, à prisão perpétua -por conspiração e alta traição- junto com István Bibó, que, ao lado do martirizado primeiro-ministro comunista Imre Nagy, havia sido o outro herói político de 56. Foi na prisão que aprendi inglês, e hoje sinto que só por causa disso já me valeu a pena ter sido encarcerado... Vivi uns bons 20 anos de traduzir, para o húngaro, as obras de escritores americanos como Faulkner, Hemingway, Styron, Doctorow, Updike, Susan Sontag, James Baldwin etc. Trabalho que a América me recompensou com o prêmio Wheatland.
Depois de certos ziguezagues profissionais tornei-me escritor. Eu tinha 52 anos quando saiu minha primeira obra. Esse meu primeiro livro publicado chamava-se "Sarusok" ("Gente de Sandália, 1974").
Budapeste, 1991.

"A 'névtelen' magyar" ("Um húngaro anônimo"), prefácio a "Gyaluforgács" ("Lascas"). Pesti Szalon Kõnyvkiado (Budapeste, 1991).
Tradução do original húngaro de Nelson Ascher.

* Quando Árpád Gõncz escreveu o texto, o país ainda não havia sido divido em República Tcheca e Eslováquia

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