São Paulo, domingo, 30 de março de 1997
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As novas bonequinhas de luxo

DEBORAH GIANNINI; ADRIANA VIEIRA

Ainda crianças, meninas substituem as brincadeiras por visitas ao cabeleireiro, maquiagem e roupas da moda
"Compramos roupas na Les Filós e na Guess, mas depois temos que levar na costureira para apertar, porquefica grande"
(Camila Ferraz, 11)
"Sempre acabo levando na bolsa mais coisas do que preciso"
(Ana Carolina Horst, 11)
POR DEBORAH GIANNINI
E ADRIANA VIEIRA
FOTOS ANA OTTONI
Elas acordam às 6h30. Tiram os bobs e fazem uma escova rápida na franja, clareada com mechas loiras. Passam batom rosa, colocam pulseira e brincos dourados. Uma borrifada de perfume Ralph Lauren, o uniforme e, 40 minutos depois, estão prontas para sair.
É assim que as irmãs Corine e Camilla Ferraz, gêmeas de 11 anos, se preparam para ir ao colégio, o tradicional Rio Branco, em Higienópolis, onde cursam a 5ª série.
Desde os 10 anos, as irmãs não brincam mais de boneca. A diversão agora é passear pelo shopping Iguatemi sábado à tarde com as amigas. "Gosto de ir com uma calça montaria, camisa jeans e uma camisetinha por dentro", conta Corine, que escolhe suas roupas inspirada na atriz e modelo Patrícia de Sabrit.
Dois exemplos radicais de vaidade precoce? Com certeza, não. Uma volta pelas principais escolas de São Paulo mostra que o bombardeio da mídia sobre as mulheres ("emagreçam!", "não envelheçam!", "cuidem dos cabelos!") já faz vítimas também entre as crianças.
Carina, 11, e Samantha Ignacio Ferreira, 9, frequentam o salão de beleza desde os 7 anos. "A gente tem de cuidar agora para, mais tarde, o cabelo não ficar armado, sem vida", diz Samantha.
Uma vez por semana, o pai, o produtor de shows Edson Ferreira, 38, vai buscá-las em Sorocaba, onde moram com a mãe, e as leva ao Studio W, um dos mais caros de São Paulo. É o dia da semana mais divertido delas.
As meninas passam a tarde em banhos de creme, hidratação no cabelo, escovas e manicure. "Se eu deixasse, minhas filhas só lavariam a cabeça no salão", conta o pai, que gasta pelo menos R$ 200 por semana no cabeleireiro.
Além de mais nova, Samantha também é mais extrovertida e vaidosa que a irmã. "Outro dia, quando fui buscá-las, fiquei surpreso: Samantha tinha feito relaxamento", conta o pai.
A menina se explica rapidamente: "Tenho cabelo muito ondulado, preciso cuidar". E completa, com argumentos tirados de revistas femininas: "Eu também queria fazer luzes, mas tenho medo que meu cabelo fique muito ressecado". Para quem não sabe: luzes é o novo nome que se dá aos antigos reflexos (e, de fato, provocam ressecamento).
Em casa, os cuidados com a beleza continuam. Entre lições da escola, TV e algumas brincadeiras, como pega-pega e esconde-esconde, Samantha e Carina usam creme hidratante no corpo e já se preocupam com uma alimentação saudável para "manter a pele bonita".
Elas seguem o exemplo da irmã mais velha, Camila, 14, que já consultou dermatologistas por causa de acne. Nesta Páscoa, trocaram o chocolate por roupa. "Além de ser mais legal ganhar roupa, chocolate dá espinha", diz Carina.
As meninas evitam até refrigerante. "Só tomo quando estou com muita vontade, porque sei que dá celulite", explica Samantha.
Salto e bolinhas
Como o fenômeno é coletivo, a maioria dos pais não se preocupa com o excesso de vaidade infantil. "Vaidade é sinônimo de que a mulher se cuida. Tratar da beleza tem de se tornar um hábito, assim como escovar os dentes", diz Edson, pai de Samantha e Carina.
A mãe das gêmeas, a comerciante Maria Carmem Ferraz, 42, também não condena, mas estranha o exagero. "Elas observam detalhes, marcas de roupa, sabem tudo que está na moda. É uma ansiedade, uma coisa maluca. Nem eu sou tão vaidosa quanto elas", diz.
Suas filhas gostam de fazer compras nas lojas Les Filós e Guess, dois templos das patricinhas. "Compramos, mas depois temos de levar na costureira para apertar, porque fica tudo grande", diz Camilla, que gostaria de ter 13 anos.
Apesar de todo esforço em parecer mais velha, a mãe conta que as meninas são ainda muito crianças. "Quando vão a festinhas, tiram o sapato de salto e mergulham na cama de bolinhas."
Netas da geração que viu crescer o movimento feminista, aquele que queimava sutiãs, as meninas estão preocupadas em se encaixar, cada vez mais cedo, nos estereótipos de beleza: é preciso ser magra, loira, ter a pele lisa, usar roupas e perfume da moda.
De uma geração para outra, a idealização da beleza parece cada vez mais totalitária. Os modelos das meninas de hoje são apenas isso: modelos -seres idolatrados pelas perfeições de suas formas, cujas performances são ficar imóveis, em poses para fotógrafos, ou andar para a frente (no jargão do meio, desfilar).
"A mulher mais bonita que existe não é atriz, é a Cindy Crawford", diz a pequena Samantha.
No território nacional, Xuxa e Angélica dividem a preferência: as duas são um pouco mais que modelos, porque, além de posar e andar, pulam muito.
"Minhas filhas cresceram assistindo o programa da Xuxa, que é cheia de vaidade, de beleza", diz Edson. Um dos hits da apresentadora, a música "Jogo da Rima", diz "gordurinha, gordurão, vai saindo de montão".
A psicóloga Maíra Tanis, especialista em crianças e adolescentes, acha que hoje há "um apressamento da adolescência". "Naturalmente, dos 8 aos 12 anos, a criança não teria características de vaidade. A estimulação da mídia acaba trazendo temas próprios dos adultos", diz (leia texto à pág. 17).
Para Maíra, o sonho de profissão das meninas de hoje mudou em função da mídia. "Antes, elas queriam ser professoras, enfermeiras, e agora querem ser modelos a qualquer custo", afirma.
Mãe de miss
Aos 6 anos, Gabriela Soeltl já realizou o sonho de ser modelo. Com o título de miss infantil São Caetano do Sul e várias propagandas no currículo, ela tem hábitos incomuns à sua idade.
Duas vezes por semana, a mãe lava seu cabelo loiro -quase branco- com xampu de camomila, depois prepara um banho de creme com touca térmica e faz escova. "É muito chato ficar com aquela touca", reclama Gabriela. A mãe, a professora Márcia Soeltl, 39, explica: "É preciso cuidar, porque o cabelo dela é muito fininho, embaraça demais".
Gabriela faz balé desde os 4 anos, o que dá mais graça e postura às suas poses de modelo. O pai diz que o sucesso da filha, que já foi bebê Johnson, não se restringe aos comerciais de TV: "Na escola, ela é paparicada e, na rua, dizem que é mais bonita do que a Xuxa". A menina já se convenceu. Quando se olha no espelho, ela diz: "Deus caprichou".
Velha aos 15 anos
Quem não teve a "sorte" de Gabriela, de nascer com os cabelos da cor dos das apresentadoras de programas infantis, apela para as tinturas. Andréa Romanos Cabello, 12, aluna do Colégio Nossa Senhora Aparecida (em Moema), tira o uniforme nos finais de semana para passear no shopping Morumbi de calça jeans e sandália de saltinho.
Três vezes por mês, ela vai ao cabeleireiro, onde faz escova e banho de creme. Para manter a forma, pratica pólo aquático. "Eu nem gosto muito, mas é bom para deixar o corpo bonito, sem flacidez", afirma Andréa.
A irmã gêmea Adriana, também vaidosa, explica: "Gosto da minha idade, porque não sou criança, nem adolescente com espinhas. Quando tiver 15 anos, acho que estarei me sentindo velha".
A mãe, a dona de loja Helena Romanos Cestafe, diz que vaidade é tradição na família. "Minha mãe sempre foi muito arrumada e hoje, mesmo aos 68 anos, é uma senhora bem vestida. Eu também me cuido muito. Faço quatro horas diárias de ginástica e deixo os meus cabelos loiros e compridos."
A médica Maria do Carmo Horst, mãe de Ana Carolina, 11, aluna do Mater Dei (no Jardim Europa), diz que coloca limites à vaidade da filha. "Não permito que ela tinja o cabelo, mas deixo ela escolher o perfume, cremes e roupas."
Ana Carolina gosta de coisas sofisticadas. "Meu perfume é Giorgio Armani, que comprei com a minha mesada. No cabelo, uso creme com vitamina A. Gosto de batom vermelho e marrom", diz a menina, que "faz unhas à francesa" (sem tirar a cutícula).
Ela e as amigas Maria Christina Natanson, 10, e Luiza Sigulem, 11, vão para a escola de bolsa, em vez de mochila. Dentro, há um pager, carteira, duas agendas (uma comum e outra eletrônica) e estojo de maquiagem. "Sempre levo na bolsa mais coisa do que preciso", diz.
Pager e celular
Também aluna do Mater Dei, Ana Carolina Megale, 13, faz a linha mais discreta, embora carregue um pager e um celular. "Minha mãe não usa, acha inútil, então deu o dela para mim", diz.
O colégio já proibiu o uso dos aparelhos na sala de aula, mas, nos shoppings e shows, ela não dispensa os apetrechos. "Minha mãe manda um recado no bip e eu ligo pelo celular", explica.
Ana gosta de camisa "mais justinha", rímel, batom, perfume (Salvador Dalí e Insensatez) e tem muita vontade de fazer luzes, mas sua mãe não deixa, porque estraga o cabelo.
Peixe fora d'água
Quem não se encaixa no padrão princesa, apela a todo tipo de tratamento, mesmo com apenas 12 anos. T.K. vai três vezes por semana a uma clínica de estética para se livrar de celulites e gordura localizada.
Durante três horas, ela se submete a técnicas de nomes pomposos -drenagem linfática, eletrolipo, dyat-, que prometem milagres. "Minha prima, alguns meses mais velha do que eu, fez esse tratamento e deu supercerto. Então, resolvi fazer, porque estava me sentindo mal."
A mãe, que faz o mesmo tratamento da filha, aprova: "Hoje, a concorrência é muito grande. As meninas dessa geração andam num ambiente de desfile de moda. Na TV, só aparecem mulheres e homens perfeitos. É preciso se cuidar, ser vaidosa para não se sentir um peixe fora d'água".
Decidida a perder peso, ela também entrou num regime rigoroso. "Eu decido o que devo comer. Pela manhã, tomo um complexo que melhora articulação, cabelos e unhas. Na hora do almoço, como um pão e meio com ricota, tomate, cenoura e alface. À tarde, frutas, e tomo só líquidos à noite", diz T.K., que pediu para não ser identificada, com medo da reação dos colegas na escola.
O esforço de T. K. para perder alguns centímetros na coxa mostra que a beleza já arregimenta "escravinhas" nos playgrounds da cidade.

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