São Paulo, segunda-feira, 31 de março de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A indissociabilidade entre ensino e pesquisa

ROGÉRIO MENEGHINI

A preocupação do reitor da Unicamp, José Martins Filho, em defender a ciência brasileira, exposta em recente artigo nesta página (11/3), é confortadora. Porém são preocupantes seus dogmas e propostas de estratégias no que diz respeito à interação ciência/universidade. Mormente porque deles compartilham muitos docentes/pesquisadores bem-intencionados.
Em primeiro lugar, a idéia da indissociabilidade de ensino e pesquisa, isto é, de que só vivência contínua em ciência permite ensinar bem, é equivocada e nociva ao ensino superior.
Exemplos inúmeros existem hoje de ensino universitário de boa qualidade não acoplado à realização de pesquisa. Eles vão dos "colleges" americanos e das universidades politécnicas inglesas ao Instituto Tecnológico de Aeronáutica, que por muitos anos atraiu a nata dos estudantes de engenharia.
A estratégia que advém desse dogma, e que é encampada pelo Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras, é que o objetivo a ser perseguido é o da homogeneização gradativa da produção científica, de tal forma que todo o ensino superior seja formado por universidades de pesquisa, nas quais em todas as suas unidades e departamentos se realize pesquisa de alto nível.
Pois bem, essa política se pratica hoje na universidade pública, mas, como não poderia deixar de ser, apenas no papel.
A ciência brasileira é essencialmente produzida na universidade pública. Mas o efeito de concentração é muito forte: 87% da produção científica é gerada por apenas 5% dos departamentos ou institutos dessas universidades.
Este não é um fenômeno peculiar brasileiro. O grosso da produção científica relevante dos EUA está concentrado em 15 a 20 universidades das costas leste e oeste. Seria inatingível e não atenderia o interesse da nação transformar cada uma das mil universidades americanas num clone de Harvard.
O aspecto perverso na pirâmide de concentração brasileira é que, dos 60 mil docentes da universidade pública, cerca de 40 mil são pagos de forma aproximadamente equivalente para fazer pesquisa. Porém há dados segundo os quais cerca de metade não produziu absolutamente nada num período recente de três anos.
Isso significa que cerca de R$ 1,2 bilhão por ano vão para o ralo. Se esses professores estivessem sendo pagos apenas para dar aulas, que é o que efetivamente fazem, poder-se-ia pagar a eles um salário até melhor por aula/hora, e o restante seria transferido para as agências de fomento à pesquisa, quase duplicando o investimento em ciência brasileira. Assim, o dinheiro seria canalizado para aqueles que fazem ciência, pois essas agências têm "know-how" para reconhecê-los.
A universidade pública precisa ser defendida, e escrevi um artigo nesta Folha (29/7/96) apontando para o que ela produziu em benefícios socioeconômicos com pesquisa, que dariam para cobrir todos os investimentos nela feitos.
Porém defendê-la implica identificar suas falhas e procurar melhorá-la. Nenhuma universidade pode fazer pesquisa de nível em todas as áreas. Nem Harvard nem USP. Há que fazer opções, e esse é um conceito que se universaliza. A consequência é que, mesmo nas melhores universidades brasileiras, teremos de abdicar da ideologia de indissociabilidade pesquisa/ensino.
Em muitas áreas, teremos que admitir que não há condições de efetuar uma boa pesquisa, mas teremos que procurar ter ali um bom ensino de graduação.
Isso poderia ser alcançado com professores-colaboradores com remuneração digna, com perfis de profissionais de competência, em engenharia, medicina, odontologia, direito etc.; ou mesmo em áreas básicas, por professores que tivessem alcançado o título de mestre, ou mesmo de doutor, mas que não tivessem interesse em continuar na pesquisa.
Não quero deixar a impressão de que cursos ministrados por pesquisadores seriam iguais aos ministrados por não-pesquisadores. Certamente os primeiros teriam uma marca proveniente da vivência desses mestres no trabalho de criação científica, o que seria um motivo de inspiração para os alunos seguirem o caminho de pesquisa por meio da pós-graduação.
Porém não é menos certo que, em ambos os cursos, poder-se-ia levar o aluno a um grau equivalente de formação e de conhecimento.
Nesse contexto, a universidade só abrigaria duas categorias de professores, os de dedicação exclusiva, engajados em pesquisa, ensino e extensão, e os professores-colaboradores, apenas envolvidos em ensino.
Esse não é um caminho elitista. A pujança econômica do eixo São Paulo-Rio faz com que, inevitavelmente, a ciência ali se concentre. Porém isso não quer dizer que uma universidade do Nordeste não tenha bons núcleos de pesquisa (vide departamentos de física e química da UFPE). Massa crítica, liderança, projetos acadêmicos e captação de recursos constituem o ingrediente.

Texto Anterior: ESQUECIMENTO; ACORDO
Próximo Texto: Barbárie urbana
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.