São Paulo, quinta-feira, 3 de abril de 1997
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Economia e ideologia

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

Economistas e outros especialistas estão quase sempre submetidos à pressão das "verdades" e "teorias" consagradas pelos interesses e preconceitos dominantes.
O leitor talvez não imagine como é forte essa pressão e como ela deforma o debate público. Cargos, financiamentos, acesso à mídia, respeitabilidade, tudo isso está, em grande medida, condicionado à disposição de rezar pela cartilha. Às vezes, a pressão conduz a resultados grotescos.
Considerem, por exemplo, a questão da presença do Estado na economia. É um dos temas mais controvertidos da história do pensamento econômico.
Nos últimos tempos, entretanto, predomina amplamente a confiança no mercado e na superior eficácia da iniciativa privada. A maioria dos brasileiros está piamente convencida de que o Estado entrou em fase de declínio irremediável nessa nossa época de "neoliberalismo" e "globalização".
Talvez isso seja verdade em certas regiões do mundo, como grande parte da África e da América Latina. Mas, de modo geral, não é o que está acontecendo nos países centrais e nos países em desenvolvimento mais bem-sucedidos.
É realmente impressionante o tamanho da distância que separa a realidade econômica da sua representação ideológica ou doutrinária.
Raramente os economistas se dignam a nos revelar a seguinte e constrangedora verdade: apesar do suposto triunfo do pensamento "neoliberal" e dos programas de privatização, o Primeiro Mundo é um parque de dinossauros, onde a participação do Estado tem aumentado na maioria dos países.
Nos últimos 20 anos, a tendência dominante nesses países foi de aumento do gasto público, da carga tributária global, dos déficits fiscais e do endividamento governamental. Não apenas em termos absolutos, mas como proporção do PIB. Na maioria dos países, aumentou até mesmo a participação do emprego público no emprego total.
Já apresentei esses dados em artigos anteriores nessa coluna, mas (como seria de se esperar) poucos se interessam em considerá-los.
Não é que sejam de difícil acesso. Ao contrário, as estatísticas em questão podem ser encontradas em fontes ultraconhecidas e de grande prestígio internacional, como a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico -a OCDE- e o Fundo Monetário Internacional -FMI.
A maior parte das publicações dessas entidades está disponível, ainda que com algum atraso, em várias de nossas bibliotecas e centros de documentação.
Mas a verdade é que estatísticas nunca são páreo para preconceitos bem sedimentados e alimentados por interesses poderosos. E a nossa época, particularmente nos países periféricos, é de um preconceito feroz e implacável contra o Estado.
Vito Tanzi, um dos mais conhecidos especialistas em finanças públicas do FMI, realizou em co-autoria com Ludger Schuknecht um estudo intitulado "O crescimento do governo e a reforma do Estado nos países desenvolvidos".
O estudo mostra que, nos principais países desenvolvidos, a participação do gasto estatal no PIB cresceu de forma substancial no século 20, passando de uma média de 9% logo antes da Primeira Guerra Mundial para 43% em 1980.
No período mais recente, já em plena época de auge da ideologia "neoliberal", a relação despesa pública/PIB continuou subindo, ainda que em ritmo menos acelerado, tendo alcançado 46% em 1990 e 49% em 1994.
"Poucos países", concluem os autores, "acompanharam a sua retórica antigoverno com mudanças efetivas nos seus regimes de política econômica."
Mas poucos tomarão conhecimento disso aqui no Brasil. A maioria dos nossos economistas e (de)formadores de opinião continuará repetindo impassivelmente os slogans de sempre sobre a "realidade" internacional a que o Brasil tem de se adaptar para não "ficar à margem do mundo" -aquele tipo de discurso que cria o clima de opinião conveniente, por exemplo, para privatizar companhias da importância da Vale do Rio Doce, com pouco debate e explicação.
Nessa e em outras questões, o papel da maioria dos economistas tem sido o de propagar servilmente o ideário dominante. "Mutatis mutandis", aplica-se a eles o que dizia Schopenhauer dos filósofos do seu tempo: submetidos à regra do "primum vivere", estão sempre dispostos, e com o mais solene desprezo por realidades inconvenientes, a deduzir "a priori" absolutamente tudo o que lhes for pedido, o bom Deus, o diabo ou o que seja.

E-mail: pnbjr@ibm.net

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