São Paulo, sexta-feira, 4 de abril de 1997
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Porca de Marie foi disputada por 4 editoras

HAROLDO CERAVOLO SEREZA
DA REDAÇÃO

Até setembro do ano passado, Marie Darrieussecq, aos 27 anos, professora de literatura moderna da Universidade de Lille, na França, escrevera cinco romances. Nenhum havia sido publicado. Só não era inteiramente desconhecida porque, aos 19 anos, recebera o Prêmio do Jovem Escritor, com um dos trabalhos que ela não espera ver impressos.
Seu sexto livro, "Porcarias" ("Truismes" no original, uma brincadeira com a consonância de "true", verdade em inglês, e "truie", leitoa em francês), foi disputado por quatro editoras; a pequena P.O.L. levou a melhor.
A escolha, segundo a autora, foi meritória, pela tradição da editora de publicar bons livros antes de se perguntar se eles venderão bem.
É romântico, embora esconda o susto que Darrieussecq levou ao ver seus originais serem imediatamente aceitos por outras três grandes editoras.
A personagem começa pedindo perdão. Sentindo "câimbras horríveis" ao segurar a caneta, escrevendo com uma "letra de porco", a narradora afirma: "Sei que essa história poderá causar confusão e angústia, que vai perturbar as pessoas. Imagino que o editor que aceitar a responsabilidade desse manuscrito vai se expor a infinitos aborrecimentos. Talvez não seja poupado da prisão, e desde já peço desculpas pelo transtorno".
A ficção, ao menos por enquanto, não se traduziu em realidade.
"Porcarias", narrativa em primeira pessoa de uma vendedora de perfumes que, aos poucos, vai se transformando numa porca, não causou problemas a Paul Otchakovsky-Laurens, que cede suas iniciais à editora. Pelo contrário, levou a P.O.L. ao primeiro lugar no ranking dos livros de ficção.
Mais de 200 mil cópias foram vendidas, convertendo Darrieussecq no grande fenômeno da literatura francesa de 1996.
Seu livro já foi negociado para 29 países, tão diferentes quanto Alemanha, EUA, Japão, Hungria e Taiwan. O cineasta francês Jean-Luc Godard já adquiriu os direitos e pretende filmar "Porcarias".
Metamorfoses não são novidades nem mesmo no cinema: basta lembrar das versões de "A Mosca". Na literatura então, a tradição já existia nos escritos de Homero, mas a comparação com Franz Kafka e sua "Metamorfose" foi inevitável.
Darrieussecq diz que certamente dialoga com outros livros. "Mas, para escrever, é preciso alcançar uma espécie de vazio em relação à literatura já existente", afirmou ela em entrevista publicada pelo Mais! em 16 de março. Se tivesse pensado em Kafka, acha, seu processo de criação seria seriamente constrangido.
Sua mulher-porca começa a perceber a transformação quando não consegue emagrecer. Vai se arredondando, preferindo legumes a carnes, torna-se irresistível sexualmente para os clientes (na entrevista em que consegue o emprego, tem o seio direito bolinado pelo futuro patrão), sofre um aborto, tem ciclos menstruais alterados, ganha pêlos.
É o fantástico, com jeito de autobiografia, embora não se enquadre nos livros de autoficção e, nem de longe, haja uma aproximação entre personagem e autora.
As mudanças ora são sexualmente estimulantes, ora não. Embora perceba quando se aproxima do irresistível e quando se afasta do atrativo, a personagem demora a tomar consciência do que ocorre.
Em determinado momento do livro, a narradora descreve sua relação com um homem que se transforma em cachorro de acordo com a Lua.
Darrieussecq temia que sua obra fosse classificada de misógina, uma demonstração de aversão às mulheres. Não foi o que ocorreu. Para a escritora, que acredita que as mulheres se identificaram com o texto, "Porcarias" é uma abordagem positiva, carnal, sensual do corpo feminino.
Essa abordagem, diz a escritora, é um dos aspectos que podem fazer com que o livro seja bem aceito fora da Europa.
Política
A sensação da temporada literária francesa ganhou destaque pelo seu discurso antifascista e, ao mesmo tempo, totalmente avesso ao politicamente correto.
Num momento em que os intelectuais franceses (inclusive Darrieussecq) se mobilizavam contra a chamada Lei Debré, um cerco aos imigrantes, o livro foi saudado como o primeiro romance anti-Le Pen, o líder da extrema direita francesa. Um político fascista é uma das personagens, num futuro não muito distante (o Réveillon do ano 2000 é uma das lembranças da narradora e o euro, a moeda corrente).
Esse, entretanto, não é o aspecto que mais interessa à escritora. Darrieussecq diz que todo discurso antifascista é uma banalidade hoje em dia.
"Com certeza, tem disso também. Para mim, no entanto, foi a idéia de que, por meio da voz pouco consciente dela mesma, passam truísmos, falsas verdades, dessas verdades que as pessoas têm e sobre as quais elas não pensam."
Não é só a política como disputa pelo poder estatal, digamos assim, que aparece. Com incentivo ao uso do corpo para vender cosméticos (o que, em si, já se sustenta) e com vendedores abrindo mão de salários e comissões, o livro de Darrieussecq revela uma preocupação com o mundo do trabalho que foge ao usual.

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