São Paulo, sexta-feira, 4 de abril de 1997
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'Olhar, registrar, fixar' é lema do narrador

ANTOINE DE GAUDEMAR
DO "LIBÉRATION"

A "baía de ninguém" fica a oeste de Paris, em algum lugar situado entre Meudon e Versailles, entre a cidade e os bosques. Nem o lugar, nem o nome figuram em nenhum mapa ou placa de sinalização. Mas a baía existe na topografia de Peter Handke: é um anfiteatro natural de colinas que descem docemente em direção ao rio e à capital. Situada a cinco minutos da torre Eiffel, em linha reta, essa região de Hauts-de Seine, aparentemente sem qualidade e sem história, mas que se mantém escondida e secreta, é, no entanto, única e especial, a ponto de fazer quem a percorre esquecer qualquer saudade de sua própria terra.
O narrador de "Mon Année dans la Baie de Personne" (O Ano que Passei na Baía de Ninguém) é austríaco de origem, jurista por formação e trabalhou como diplomata, notadamente na Mongólia. Viajou muito antes de decidir instalar-se em Paris, onde, "desde o momento em que cheguei, nada se opunha a mim ou me excluía; nem o mais pequeno elemento se interpunha entre essa capital mundial e eu, que, nela, me senti aberto ao mundo". Pouco a pouco, começou a aventurar-se fora da cidade, explorando suas margens, em busca de um lugar para morar. Não demorou a pressentir nos subúrbios parisienses algo como "um silêncio sob forma de vento, ainda desconhecido e não descrito".
Anos mais tarde, Handke vai viver na famosa "baía de ninguém" e resolve dedicar sua vida a ela por um ano, 1997 (ou seja, foi uma ligeira projeção, já que o livro foi lançado na Alemanha em 1994). Em pouco tempo, percebe que é impossível fazer apenas sua crônica objetiva, sem misturar elementos próprios a ela "para conferir a vulnerabilidade necessária à coisa". Mas como a narrativa tradicional lhe parece gasta, não vê "outra solução senão o retorno à idéia primordial, do puro testemunho ocular: olhar, registrar, fixar". Decide deixar as coisas, os lugares, os habitantes serem o que são. Paralelamente, ele próprio se apaga; está numa fase problemática, flutuante, nostálgica, tendo muita dificuldade em falar de si mesmo no passado e até mesmo no presente. Vive uma espécie de metamorfose. Estará em processo de tornar-se "ninguém"? O livro é feito desse testemunho e dessa busca interior, que precedem a história da vida do narrador e de sete de seus amigos, que vão se reencontrar, todos, para um banquete final na "baía de ninguém".
Aos olhos do narrador -e, ao que tudo indica, aos do próprio escritor-, esse recanto suburbano se ergue como "um interior mais estrangeiro do que todos os lugares que eu havia conhecido em meus anos de viajante, por mais longínquos que fossem".
Até mesmo nas suas mais banais e minúsculas manifestações, o mundo se abre a ele como espetáculo permanente que ele absorve e no qual é absorvido. Sentinela solitária, espectador contumaz, "esperador" vazio, é assim que ele se vê: "Durante minha vida toda fui dolorosamente atormentado pelo fato de que o mundo era inacessível, que me excluía. Era esse meu problema essencial. Foram tão raras as vezes em que me senti pertencendo ao mundo, fazendo parte, agindo dentro dele, que, cada vez que isso aconteceu, foi um grande momento para mim, digno de ser transmitido à posteridade".

Livro: Mon Année dans la Baie de Personne
Autor: Peter Handke

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