São Paulo, sábado, 5 de abril de 1997
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A quadratura do círculo

RUBENS RICUPERO

No comércio como na vida, ganha-se mais jogando em todos os tabuleiros do que limitando-se a um só. Para o Brasil, cujo comércio exterior tem estrutura diversificada, sem nenhum parceiro que absorve mais de um quarto de suas exportações, essa verdade é ainda mais evidente.
Só teria assim sentido para nós aceitar negociar em âmbito restrito como o da proposta Associação de Livre Comércio das Américas ou ALCA se, por esse meio, pudéssemos obter, com o mesmo pagamento, vantagens maiores às alcançáveis no momento na esfera global, seja em acesso a mercado, seja em normas comerciais mais favoráveis.
Como os Estados Unidos serão os principais parceiros de uma negociação na qual nos cobrarão esforços adicionais de liberalização, num momento em que já estamos acumulando com eles e com o mundo déficits comerciais inquietantes, a equação é, no fundo, muito simples. Trata-se de saber se os nossos sacrifícios, já feitos e por fazer, nos valerão, em troca, a liberalização do caroço duro e indigesto do protecionismo americano, que tem resistido há décadas a várias rodadas negociadoras do GATT e provavelmente não cederia de outro modo.
A primeira camada desse núcleo impenitente é a dos produtos agrícolas, parte ainda substancial das exportações brasileiras aos EUA. Para diversos desses produtos, as tarifas americanas resultantes da Rodada Uruguai continuarão a superar 12% e às vezes os 20% como, por exemplo, para produtos de carne bovina, vários tipos de frutas frescas e em conserva, suco de laranja concentrado, amendoim, produtos vegetais, óleos vegetais etc. Uma situação de particular interesse para o Brasil é a das regras específicas que regulam o comércio do açúcar e do álcool, assim como as constantes ameaças de discriminação contra o tabaco importado.
Em seguida, é preciso tentar eliminar os picos tarifários nos produtos industriais com tarifas acima de 12% e, em certos casos, 20%: artigos de couro, tecidos de lã, sintéticos e de algodão, confecções, calçados (com níveis tarifários até de 58%!), produtos de cerâmica e vidro, relógios etc. Outros produtos de tarifas elevadas são os caminhões, vagões ferroviários, tubos de TV.
A fim de evitar que as tarifas não sejam substituídas por medidas protecionistas mais sutis, devemos insistir por soluções mais satisfatórias que as atuais em "antidumping", direitos compensatórios contra subsídios, regras de origem, barreiras sanitárias ou técnicas e salvaguardas específicas.
O Brasil tem sido uma das vítimas preferenciais do 'antidumping', particularmente em aço e ferro-ligas nos EUA (mas igualmente no Canadá e no México). A rigor, não tem muito sentido manter a aplicação de 'antidumping' no interior de uma área de livre comércio porque, na ausência de tarifas, é difícil obter no mercado doméstico preços mais altos do que nos demais mercados da área. Com efeito, à medida que os mercados regionais se fundem numa só unidade unificada e as empresas considerem esse mercado ampliado como o seu próprio mercado doméstico, o escopo para o "dumping" e a base econômica do "antidumping" tendem a desaparecer. Para impedir abusos na fase de transição durante a qual a liberalização não está concluída, pode-se aplicar a regra de "boomerang" que assegura a reexpedição dos artigos acusados de "dumping" ao país de origem, sem pagar tarifa. Os exemplos da União Européia e do Espaço Econômico Europeu, que aboliram o "antidumping", deveriam inspirar os negociadores da Alca, pois mostram ser perfeitamente exequível dispensar essa arma do arsenal protecionista.
É essencial que, num eventual acordo hemisférico, as salvaguardas para atender a problemas urgentes em certos setores obedeçam a critérios claros, não possam ser aplicadas unilateralmente e assumam a forma, quando necessário, de medidas de preços e não de barreiras quantitativas. Da mesma maneira, é preciso eliminar o caráter exageradamente restritivo de algumas barreiras sanitárias à importação de frutas, vegetais e carnes, bem como de regras de origem extremas como a "regra tríplice" sobre têxteis e as normas para autopeças adotadas pelo Nafta. Quanto aos subsídios, dada a sua importância na questão prioritária do desenvolvimento regional, serão objeto de exame específico.
Não será fácil conseguir avanços significativos numa agenda que se confunde com o coração vital do protecionismo e contra a qual é provável que se coliguem alguns dos "lobbies" de maior peso político no Congresso americano. O argumento das dificuldades políticas, porém, nunca desarmou as pressões de Washington quando essas dificuldades se encontravam do nosso lado. Além do mais, temos neste caso a nosso favor tanto as razões econômicas da teoria do livre comércio como as vantagens morais de uma postura liberalizante.
Mas, acima de tudo, jogamos nisso o nosso destino. Ampliar a abertura numa negociação com a economia mais competitiva e poderosa do mundo e conseguir, ao mesmo tempo, eliminar o déficit comercial que acumulamos em grande parte com essa mesma economia é como lograr a quadratura do círculo.
Apenas valerá a pena arriscar se nossas concessões adicionais forem compensadas com benefícios substanciais, capazes de criar as condições de possibilidade de um aumento sensível de nossas exportações ao mercado americano.
O resto dependerá de pormos a casa em ordem e recuperar o perdido dinamismo do comércio exterior brasileiro.

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