São Paulo, sábado, 5 de abril de 1997
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"Câmeras não têm olhos", diz Ophuls

FERNANDA DA ESCÓSSIA
DA SUCURSAL DO RIO

Empenhado em filmar a miséria na virada do século, o cineasta Marcel Ophuls já encontrou uma metáfora para seu próximo documentário: a história de um par de tênis Nike, da fabricação no Vietnã até a transformação em símbolo de status social, usado por estrelas e cobiçado por miseráveis.
"Quero filmar as meninas trabalhando no Vietnã, os bairros pobres de Paris, talvez as favelas do Rio, todo o fim deste século, me desculpe, fodido, e o século fodido que está vindo", afirmou Ophuls em entrevista à Folha.
O documentário será feito a partir da adaptação de "L'Horreur Economique", de Vivianne Forrester, um livro sobre globalização e miséria, sucesso editorial na França.
Documentarista consagrado, Ophuls, 69, é filho do cineasta Max Ophuls. Nasceu na Alemanha, mas sua família, judia, refugiou-se do nazismo na França.O cineasta está no Brasil a convite da Folha e do 2º Festival Internacional de Documentários - É Tudo Verdade, que começou ontem no Rio. A seguir, trechos de sua entrevista:
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Folha - O que há em "L'Horreur Economique" que o atraiu?
Marcel Ophuls - Eu fiquei absolutamente fascinado pelo livro. O que há de especial nele é uma raiva que não é marxista, mas a raiva de uma mulher, uma raiva muito feminina. Eu vou usar no filme as sentenças que ela escreveu, e sua imagem. Sua família fugiu do nazismo e, ao cruzar os Pirineus, seu pai teve que responder às saudações da guarda franquista na Espanha: "Viva Franco!". Acho que este momento transformou Vivianne Forrester num novo tipo de revolucionária. Então, o filme será todo baseado nesta diferença entre pobres e ricos, nesta injustiça que deve ser mostrada.
Folha - O senhor já escolheu que lugares visitará?
Ophuls - Não, eu estou tentando achar dinheiro primeiro. Eu quero ir ao Vietnã filmar o caso de um par de tênis Nike que custa US$ 250, e as pessoas que fazem estes tênis ganham US$ 250 por ano. Elas não têm sapatos, não usam sapatos. São garotinhas, de 12, 13 anos. E estes sapatos são usados por grandes estrelas, como Michael Jordan.
Folha - O senhor sabe que aqui, como em muitos países pobres, se pode matar por um par de tênis?
Ophuls - Sim? Você vê? É isto.
Folha - O livro fala também de globalização, não? O senhor acha que a globalização é um caminho sem alternativas?
Ophuls - Acho que há coisas boas e inevitáveis, como a comunicação. Mas acho que o mercado não é inevitável. Isso é estúpido. Há alternativas, embora elas sejam difíceis na era da TV de massa. Mesmo a democracia está difícil nesta época de doutrinação feita por seriados como "Dallas" e "Dinastia". Acho que as alternativas são as eleições e as uniões econômicas. Acho que os países devem se proteger da privatização e da globalização.
Folha - O senhor, consagrado como documentarista, tem dito que não acredita em cinema-verdade. Por quê?
Ophuls - Acho que esta expressão é de uma arrogância louca. Grandes cineastas como Frank Capra, Hitchcock e John Huston fizeram documentários melhores que os nossos. Não se deve acreditar que fizemos muita coisa porque filmamos gente na rua. Câmeras não têm olhos, pessoas têm olhos.
Folha - Seu último filme, "Os Problemas que Temos Visto", mostra os correspondentes estrangeiros na guerra de Sarajevo. O senhor vê semelhanças entre o jornalismo e os documentários?
Ophuls - O filme fala um pouco disso. É claro que o trabalho do cineasta é muito mais autoral e mais subjetivo. O filme fala do jornalismo em tempo de guerra e de crise. Todos os jornalistas sabiam quem eram culpados e vítimas, e me pergunto por que os políticos e as pessoas do mundo se mantiveram tranquilos em suas casas e não intervieram para ajudar os outros. Esse é o dilema de nossa época. Quanto mais a comunicação é instantânea, quanto mais nós vemos a miséria dos outros em nossa sala de jantar, mais as pessoas ficam passivas.
Folha - Cenas de violência policial exibidas na televisão brasileira provocaram comoção nacional. O senhor acredita no poder de tais imagens?
Ophuls - Eu vi as cenas na televisão francesa e não pude acreditar. Quando cheguei ao Brasil, alguém me disse que tudo parecia montado, que fora filmado pela CIA. Aí voltamos ao documentário: quanto mais a mensagem incomoda, mais se tenta duvidar do autor. É um mecanismo de defesa patriótica. Acho que as imagens só foram filmadas porque são comuns, porque alguém sabia que elas acontecem frequentemente. Até onde eu sei, o caso do espancamento de Rodney King ficou impune. Esta é a resposta.

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