São Paulo, sábado, 5 de abril de 1997
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Ex-morador de favela relata violência da PM

ARMANDO ANTENORE
DA REPORTAGEM LOCAL

Era uma blitz de rotina. O tenente da polícia e dois soldados revistavam um jovem morador da região. Não encontraram nada que o incriminasse. Mesmo assim, mandaram-no correr.
O rapaz, assustado, atendeu a ordem e deu no pé em ziguezague. O tenente, então, engatilhou o revólver que já empunhava, mirou o "suspeito" e disparou.
Acabou atingindo a coxa de uma menina que passava por ali. Soube, depois, se chamar Maria da Glória e ter apenas sete anos.
A cena -que remete às recentes imagens de violência policial em Diadema (SP)- não é fictícia. Ocorreu por volta de 1968 numa favela da zona sul carioca: a Rocinha, considerada a maior da América Latina.
Cinematográfico, o relato faz parte do livro "O Bandido", recém-publicado pela Sette Letras, uma pequena editora do Rio.
O autor é o advogado Ronaldo Alves. Negro, pai de dois filhos, nasceu na Rocinha em 1955 e só saiu de lá com 23 anos. Está, agora, se lançando como escritor.
Nas 160 páginas de "O Bandido", reúne 25 capítulos de inspiração biográfica, que narram o cotidiano da favela entre 1963 e 1975.
Em muitos aspectos, a Rocinha daquele tempo mal lembra o complexo habitacional que, hoje, dispõe até de TV por assinatura.
"Faltavam luz e água encanada. O narcotráfico quase não existia e raramente se viam armas de fogo", afirma Alves.
No capítulo batizado de "A Polícia e Sua Atuação", entretanto, o livro demonstra que a truculência das "autoridades" já ameaçava "os homens de bem".
O escritor resgata não somente o episódio do tiro em Maria da Glória, mas também um outro, que resultou no assassinato de um idoso (leia trecho à esquerda).
"Selvagerias como as de Diadema não me impressionam nem um pouco. Mesmo numa época em que a favela praticamente não tinha criminalidade, a polícia tomava seus moradores por bichos", testemunha o advogado.
Filho de uma empregada doméstica e de um confeiteiro, Ronaldo Alves passou a infância e a adolescência dividindo um barraco de madeira e chão de barro com os pais e sete irmãos.
Quando completou 12 anos, começou a trabalhar na própria Rocinha. Fez de tudo: vendeu frutas e bolo de aipim, carregou água, engraxou sapatos.
Desde cedo, estimulado pela mãe, lia gibis e fotonovelas. Um dia, ganhou "Reinações de Narizinho", clássico de Monteiro Lobato. Pegou gosto por livros e nunca mais o perdeu.
Foi fuçando as estantes da biblioteca estadual do Rio que descobriu o jornalista e escritor José do Patrocínio (1853-1905), líder da campanha abolicionista no país.
Estudou tão profundamente o personagem que, em 1977, resolveu participar do "8 ou 800".
O programa de perguntas e respostas -que a Rede Globo exibia todo domingo, às 19h- alçou o morador da Rocinha à fama.
Alves acertou dezenas de questões sobre o "Tigre da Abolição" e levou o prêmio máximo: um apartamento de dois dormitórios em Lins de Vasconcelos, bairro da zona norte carioca.
Tirou a família da favela, conquistou capas de revistas e virou garoto propaganda da caderneta de poupança Delfin -que, depois, faliu. "Veja só. Eu, negro, pobre, me interessei por um abolicionista, e ele mudou minha vida."
Formado em direito há seis anos, Alves trabalha hoje como coordenador do Programa de Saneamento para População de Baixa Renda, o Prosanear, desenvolvido pelo governo do Rio.
Com "O Bandido", pretende combater "o olhar distorcido que a sociedade brasileira ainda lança sobre os favelados, tidos sempre como feios, sujos e perigosos".
"Quero mostrar as estratégias de sobrevivência em comunidades organizadamente desorganizadas. Sobretudo os ricos e a classe média precisam entender que o cidadão pobre é capaz de manter a dignidade enquanto administra o caos."
O escritor dedica um capítulo do livro às parteiras e rezadeiras da favela. Outro trecho conta a história do gari Marreco -que, às quartas-feiras, distribuía para as crianças da Rocinha restos de brinquedos recolhidos nos lixos da cidade.
Há, ainda, um capítulo sobre a célebre enchente de 1966, que parou o Rio. As beatas do morro acreditavam que o cantor Roberto Carlos provocara a tragédia, pois pedia, em um sucesso da época, que tudo fosse para o inferno.
"O Bandido", no entanto, não traz somente relatos verídicos. Alguns apenas recriam a realidade.
É o caso do capítulo que leva o mesmo nome do livro. Tem por protagonista o adolescente Miguelzinho, morador da Rocinha que resolveu pedir emprego numa joalheria da zona sul.
Os donos da loja lhe disseram que a vaga acabara de ser preenchida. Enquanto o rapaz saía, comentaram: "Que menino horrível, olha a cara de bandido".
Miguelzinho nunca esqueceu a frase. Adulto, se transformou num perigoso marginal e voltou à joalheria para matar seus detratores.
A história é real até o momento em que o jovem deixa a loja e ouve a frase. Aconteceu com o próprio Alves. "O que se deu depois fica por conta da imaginação."

Livro: O Bandido
Autor: Ronaldo Alves
Lançamento: Sette Letras
Quanto: R$ 15 (160 págs.)

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