São Paulo, sábado, 5 de abril de 1997
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Presidente da Hungria é escritor nascido do cárcere anticomunista

NELSON ASCHER
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

O presidente da Hungria, Arpád Gõncz, que está em visita oficial ao Brasil desde quarta-feira, chega hoje a São Paulo. Gõncz (1922), que cumpre seu segundo mandato como primeiro presidente do que se poderia chamar de terceira república democrática húngara (as anteriores foram respectivamente a de 1848-49, quando a Hungria insurgiu-se contra a coroa austríaca, e a de 1945-48, que foi abolida pelos comunistas locais, que tomaram o poder com apoio dos soviéticos), é também um escritor renomado em seu país.
Na sua trajetória tipicamente centro-européia emaranham-se inextricavelmente cultura e política, desde a luta antinazista de 44, passando pela participação na breve democracia do pós-guerra, pela oposição ao stalinismo, pelo envolvimento na revolução de 56, pela condenação, em 58, à prisão perpétua, pela anistia seis anos depois e por mais um quarto de século de oposição, até a vitória final, marcada pela eleição, em 89, à presidência da Associação dos Escritores e por um mandato parlamentar no ano seguinte.
Foi aprendendo inglês no cárcere que se tornou tradutor profissional de nomes como Faulkner, Hemingway, Updike e Doctorow -e essa atividade, por sua vez, transformou-o em escritor. Segundo ele, só pelo aprendizado do inglês, o cárcere já valera a pena.
Autor de ficção, teatro e de ensaios, ele alcançou o sucesso publicando, aos 52 anos, seu primeiro romance: "Sarusok" (Gente de Sandália, 1972), uma obra de ficção histórica que trata de perseguição a hereges medievais (e cujos paralelos com a ditadura da época seus leitores não tiveram dificuldade em decifrar). Várias peças (entre as quais "Medéia Húngara" é a mais popular), contos e artigos literários, como os reunidos em "Gyaluforgács" (Lascas, 1991), que tratam de autores europeus, americanos etc., consolidaram sua reputação.
"Homecoming and Other Stories" (Corvina, Budapeste, 1991, 104 págs.) reúne, em ótima tradução para o inglês, a maioria dos contos que constavam de "Találkozások" (1980) e que foram posteriormente incorporados a "Hazaérkezés" (Volta ao Lar, Budapeste, 1991), volume que também inclui seu primeiro romance. "Tras las Rejas y Otros Escritos" (Monte Avila, Caracas, 1993, 176 págs.) reproduz, além do drama que dá nome ao livro, os mesmos contos em tradução espanhola realizada a partir da inglesa.
Por meio de oito contos geralmente breves, "Homecoming" dá uma idéia clara da arte narrativa do escritor Gõncz. Com exceção do último, e mais longo, "Encounter" (Encontro), no qual certos fantasmas, reunidos durante o final da Primeira Guerra, numa casa no interior da França, voltam a discutir o processo de Joana D'Arc, os contos abordam situações humanas específicas e se ambientam na Hungria.
Dois deles, "1944" e "O Front", falam dos dias finais da Segunda Guerra. Dois, brevíssimos, "Volta ao Lar" e "A Criança", flagram concentradamente eventos cheios de significados. Dois outros, "Balança" e "Poder", tratam no amor impossível: o primeiro, entre um húngaro e sua provável ex-amada que emigrara para a Amércia; o segundo, entre um poderoso alto funcionário e sua amante que, dominadora, revela-se ainda mais poderosa.
Finalmente, "Os Velhos" -talvez o melhor de todos- aborda a esqualidez da senilidade contando a história de uma desmemoriada que prepara o jantar de comemoração dos 90 anos de seu marido cientista, um bagaço humano que, semiparalisado, ao receber uma placa comemorativa, agarra-a desesperado e não consegue conter a evacuação.
Uma das micronarrativas que, com outras 15, compõe "1944", resume a arte de Gõncz. Chama-se "O Feriado", "Suas duas mãos, suas duas pernas haviam sido arrancadas pela explosão, seu peito fora queimado. Ficara cego. Até morrer, durante uma semana, gemeu ritmicamente, noite e dia. Quase conseguiram salvá-lo."
Walter Benjamin dizia que a melhor linha de prosa seria um verso perfeito com uma única falha. Talvez a verdadeira narrativa realista seja, portanto, uma descrição absolutamente jornalística com um detalhe poético quase imperceptível. No caso de "O Ferido", esse detalhe preciso, que destrivializa a história inteira, é o advérbio "ritmicamente". Sem ele, o conto seria menos que uma notícia de jornal. Com ele, numa leve pincelada, cria-se uma perspectiva de sofrimento indizível, porque essa palavra (não inferível do contexto), estabelecendo uma ponte entre o mundo humano e o universo natural, ambos rítmicos, entremostra que a dor do ferido é tão cósmica que até mesmo o que há de aparentemente auspicioso na frase final -"Quase conseguiram salvá-lo"- transforma-se na possibilidade de perpetuação do horror.

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