São Paulo, domingo, 6 de abril de 1997
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A crítica das analogias surpreendentes

RÉGIS BONVICINO
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Wittgenstein's Ladder" (Os Degraus de Wittgenstein) é o título do mais recente livro de ensaios, de fato, um só longo ensaio, da crítica e professora de humanidades da Universidade de Stanford, Califórnia (EUA), Marjorie Perloff. Marjorie tem existência, aqui, com um único volume: "O Momento Futurista", editado pela Edusp, em 1993, com tradução de Sebastião Uchoa Leite e apresentação de Augusto de Campos. De se mencionar, ainda, sua entrevista para o bom "Vozes & Visões" (Iluminuras, 1996), de Rodrigo Garcia Lopes.
Há, no momento, vários ensaístas e poetas brasileiros escanteados, como João Ribeiro, Joaquim Cardoso ou o fundamental Mário Faustino. Por que, então, escrever a respeito de críticos ou de poetas "estrangeiros"? Talvez a indagação caiba para um Harold Bloom, um "neocensor", com mais ênfase no "cânone" (Roland Barthes estaria contra ou favor dele?) do que na literatura -para o qual pouco importa a poesia (poetas como "margem de manobra", para saltos promocionais).
Marjorie é, neste sentido, o anti-Harold Bloom: seus livros se voltam para a produção contemporânea, mais distante ou imediata, correndo riscos, evitando "estabilidades". Todavia ela não é, ao mesmo tempo, prisioneira dos anticânones forjados pelos movimentos da metade do século ou mesmo pelas novas tendências como a "Language Poetry" (década de 80, nos Estados Unidos): reserva-se o direito de ser crítica, de refletir, de dialogar com o que está vivo ou com o que está pouco evidente. Métrica e versos são tão combatidos (por expressarem uma ordem corroída, correlações superadas) quanto os "perigos" do "nada dizer" de certas poéticas "avant-garde".
Ou, como faz neste "Wittgenstein's Ladder", de encontrar significados históricos, sociais, ao lado de estéticos, em manifestações conhecidas como "de vanguarda" (Baudelaire abominava este termo!). Nesta perspectiva, ela está -sendo diversa- mais próxima de um Frederic Jameson, marxista norte-americano com bastante difusão no Brasil. Para ela, Ludwig Wittgenstein não era "marxista", mas compartilhava com Marx e com o pensamento materialista a noção de que a linguagem do eu depende do contexto social e do contexto de classe.
"Wittgenstein's Ladder" articula os escritos aforismáticos do filósofo vienense, que se exilou na Inglaterra, autor do "Tractatus Logico-Philosophicus", publicado em 1922, com textos de Gertrude Stein, F. Marinetti, Samuel Beckett, Thomas Bernhard, Ingeborg Bachmann e seus contemporâneos, como Robert Creeley, Charles Bernstein, Michael Palmer ou franceses como Emmanuel Hocquard e Claude Royet-Journod (vertidos para o português por Mário Laranjeira).
Marjorie demonstra, entre outras coisas, que o "Tractatus", disponível aqui na tradução de Luis Henrique Lopes dos Santos (Edusp, 1993), é, no fundo, "um livro de guerra", da Primeira Grande Guerra. Wittgenstein perguntava: qual o sentido de se estudar filosofia se isso não melhora o pensamento sobre o dia-a-dia? A ensaísta transpõe esta dúvida para o campo da literatura. Vai responder, no livro, à seguinte, entre tantas, questão: como a poesia de tais autores melhorou a percepção da condição humana?
Iluminadoras são as análises, em confronto, de peças de F. Marinetti (que ecoou nos ouvidos de Mário e Oswald de Andrade) e Gertrude Stein. Anotando as semelhanças dos textos, do início, de Stein e Ludwig ("Tractatus"), acentuando, contudo, que ele -um "outsider"- não acompanhava e tampouco admirava a produção de seus contemporâneos (havia estudado Hõlderlin), Marjorie explica, por meio da leitura dos poemas "All Right Make It a Series and Call It Marry Nettie", escrito em 1915, e um par de poemas visuais futuristas do italiano, da década de 10, como a poeta, valendo-se da linguagem do dia-a-dia e da desconstrução, neles, da sintaxe gramatical, se opôs à vanguarda paratática, violenta (pregava a guerra como método de higienização), machista e direitista de Marinetti. Stein estava, nesta época, com Alice B. Toklas, em Mallorca. Queria se casar, o que não é permitido até hoje. A guerra se iniciava e fervilhavam em sua mente as "performances" futuristas do italiano, realizadas pouco antes, em Paris. Diz Marjorie: "Uma das grandes ironias de 'Marry Nettie' é que quem, na verdade, destrói a sintaxe (saltando para uma nova sintaxe) é Stein e não o italiano, com a pregação de rejuntar substantivos (homem-torpedo-navio) ao acaso". O poema, segundo Perloff, é uma demolição da ideologia futurista, com uso de linguagem comum (notas "ingênuas" sobre compras de mercado, passeios etc.) minada por frases inconclusas (gramática). Linguagem comum, vista como essencial por Wittgenstein e abominada pelos manifestos técnicos futuristas. O trocadilho vai além: guerra (por exemplo, "They don't marry"/Eles não se casam -os homens que estão no "front"), homossexualidade, exílio, o absurdo são repassados, e Marinetti, no curso do texto, é revelado/transformado em "marionete" do "stablishment", que a oprimia. Conclui Marjorie: "Contra a insistência de Marinetti na imagem, particularmente, Stein apresenta sua própria particularidade (...), criando um contramanifesto e proclamando a diferença e a subversão". Aí reside a originalidade de pensamento da ensaísta: o recorte da diferença, de conteúdos políticos, em peças que, numa leitura apressada, apareceriam pouco distintas do ponto de vista da ideologia. No caso específico, com o uso (desconstrutivo) da linguagem comum da vida, abre, na modernidade, um outro caminho.
Brilhantes análises de "Watt" de Samuel Beckett, lido como, além de texto wittgensteiniano (semelhanças são apontadas), um texto da Segunda Grande Guerra, impregnado da linguagem deslocada e cifrada dos serviços de contra-espionagem. Perloff demonstra o quanto as técnicas de "cut-out" influenciaram o autor de "Godot", que se engajou nos serviços da Resistência depois da prisão de seu amigo judeu Paul Léon, em 1941.
A autora não se limita a estudar as relações entre os escritos de Wittgenstein e Creeley -um poeta "firmado". Vai buscá-las em novos, como Lyn Heijinian, mostrando como o "Tractatus" ainda age entre os "Languages". Trechos de "The Cold of Poetry" (1994), de Heijinian, são esmiuçados à luz do filósofo: "Rochas são emitidas por sentenças para o olho/ Circunstâncias permanecem entre as pedras/ A pessoa com quem falo está entre relógios". Marjorie explicita que a poeta está invertendo o aforismo de Wittgentein: "Palavras são emitidas por rochas para os olhos". E, no fundo, por meio da técnica "writing through", concretizando o saber wittgensteiniano: "Filosofia só pode ser escrita como poesia".
Impossível transcrever, no espaço de uma resenha, a riqueza de análises e informações deste livro -essencial para uma compreensão mais aguda de certas poéticas. Importa, para concluir, afirmar que Marjorie, ao se afastar da questão da "influência" (que ela denonima como, no mínimo, "nebulosa"), consegue criar uma crítica de "analogias", não mecânicas, surpreendentes, e de valorizar, por assim dizer, dialogando com o que está vivo, uma poesia de idéias.

Onde encomendar:
"Wittgenstein's Ladder" (285 páginas, US$ 27,95, The University of Chicago Press) pode ser encomendado, em São Paulo, à Livraria Cultura (av. Paulista, 2.073, tel. 011/285-4033) e, no Rio de Janeiro, à Livraria Marcabru (r. Marquês de São Vicente, 124, tel 021/294-6396).

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