São Paulo, domingo, 6 de abril de 1997
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A mulher combate seus mitos

ROSE MARIE MURARO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Uma das maneiras mais importantes de conhecer as representações que as sociedades têm da feminilidade é a análise dos seus mitos sexuais. E, se quisermos compreender os mitos sexuais brasileiros, vale a pena compará-los com os de outras sociedades, como, por exemplo, a americana.
Quando falamos de mitos sexuais brasileiros, dois nomes nos vêm à memória: Xuxa e Vera Fischer. Xuxa, mais do que qualquer outro símbolo sexual no Brasil, é a megastar no sentido americano do termo. Construiu uma imensa fortuna em cima de um império baseado no consumo de sua imagem pelas crianças brasileiras.
Essa imagem, cuidadosamente elaborada pela TV Globo e seus publicitários, é a de uma boneca loura, ao mesmo tempo infantil e erótica. Uma imagem que, para as meninas pequenas, é o único modelo de feminilidade disponível e que não deixa lugar para nenhuma outra alternativa, pois ocupou, por mais de dez anos, o espaço matinal de entretenimento em quase todas as casas brasileiras.
E como essa imagem não foi construída para agradar apenas as crianças, mas para ser um modelo de sexualidade feminina que desperta o desejo de todos os homens, as coisas começam a se complicar. Por um lado, os meninos, ao desejá-la, procuram se tornar iguais aos pais, com a mensagem inconsciente de que a sexualidade precoce também é o único caminho da masculinidade.
Se juntarmos essa imagem à de Vera Fischer, mulher de mais de 40 anos, também loura, mas de apelo sexual adulto, alguns traços comuns começam a aparecer.
Ambas são louras e, no Brasil, ser loura lembra as atrizes de cinema do Primeiro Mundo. E as consequências para a mulher brasileira são as piores. Quase nenhuma tem condições de se identificar com essas modelos e, por isso, sua auto-estima sexual baixa e, portanto, diminui ao nível imaginário seu valor nesse mesmo mercado sexual. Aliás, os símbolos sexuais são feitos para isso mesmo, para diminuir o valor das mulheres como mercadoria e, portanto, manter intacta a dominação masculina.
Outro ponto fundamental é a obsessão pela juventude. Xuxa tem pavor de envelhecer, e Vera Fischer, também. Xuxa, aos 33 anos, já não era mais ninfeta. E, fenômeno estranho, depois de sua aposentadoria precoce, foi substituída por uma cachorrada que manteve os mesmos índices de audiência. As crianças, em sua insondável sabedoria, voltam a ser perversos polimorfos, deixando a sexualidade localizada para quem de direito. Mas, como cachorro não vende tanto produto, aí está o clone de Xuxa. Com dez anos a menos, ela mantém a máquina funcionando... E depois dela virá outra mais nova, e depois outra...
O mesmo fenômeno, provavelmente, está acontecendo com Vera Fischer. Ela começou a se drogar quando sentiu, no seu imaginário, que a juventude ia declinando. Aliás, é nesta idade que todas elas começam a se sentir inseguras, segundo me contou outra grande atriz que havia passado pelo mesmo problema. Porque o símbolo sexual é um objeto descartável, sem vida e sem identidade.
"Nenhum fã perdoa quando um ídolo envelhece" (palavras de Xuxa a Regina Rito). Por isso, quase nenhuma mulher aguenta essa transição de objeto sexual para ser humano. Marilyn Monroe, Judy Garland, Jean Harlow, todas acabaram se matando, também drogadas. Uma das maiores atrizes brasileiras, num momento de grande depressão, assediada pelos homens que nem sequer se importavam com seus problemas, me disse, "Agora sei porque Marilyn Monroe se suicidou".
Esse culto da adolescência (Xuxa), ou da juventude (Vera Fischer), tem um papel muito importante na manutenção do status quo: é o controle da experiência e do conhecimento acumulados pelas mulheres mais maduras.
Ora, esse conhecimento e essa experiência se encarnam em uma outra loura. Ela já chegou aos 50 anos e, à medida que vai amadurecendo, sua beleza vai se transformando. Ela é Marta Suplicy, que, evidentemente, não é um objeto e sim um sujeito sexual e humano. Seu trabalho sempre foi libertador para mulheres e homens, e sua personalidade e sua beleza vão adquirindo peso à medida que os anos vão passando.
Mas estamos falando de louras! De fato, não conseguimos encontrar, no Brasil de hoje, nenhuma mulher que tenha conseguido o status de símbolo sexual que seja ou branca de cabelos escuros ou negra. As famosas mulatas gostosas das escolas de samba, ou mesmo Tais Araujo (a Xica da Silva), não são mais do que símbolos sexuais de segunda categoria. Elas não chegam a estimular o inconsciente coletivo, a não ser como mulheres de fácil acesso.
Muito diferente deste panorama foi o que encontramos nos Estados Unidos. Aqui, de Marilyn Monroe até Madonna, nenhuma mulher conseguiu ativar suficientemente os esquemas de consumo. E Madonna, se o fez, foi porque criou uma imagem de mulher transgressora dos valores puritanos da sociedade mais rica do mundo e de independência em relação aos desejos dos homens que ela manipula publicamente sem nenhuma inibição.
E num ritmo acelerado, já quase tão famosas quanto Madonna, despontam duas mulheres negras: Whitney Houston e Naomi Campbell, uma das modelos mais bem pagas do mundo (que faz par com a loura Claudia Schiffer).
Aqui estão se criando, sem dúvida, novas alternativas de identificação feminina, que tem a ver com identidade própria ou com novos padrões não ocidentais de beleza.
E não é de se espantar essa rejeição, por parte de mulheres e homens, dos padrões que caracterizaram os anos 50, como Marilyn Monroe, a loura linda, burra e infantil, ou Rita Hayworth, a "vamp" irresistível e destruidora dos homens.
Nesta sociedade, os negros emergem como uma nova classe média, ao contrário do que a mídia faz crer. É verdade que ainda 25% de todos os homens negros acabam presos ou assassinados, vítimas do preconceito racial. Mas, ainda assim, o povo negro está conseguindo impor os seus valores por meio de uma luta duríssima e, principalmente, sua potencialidade de consumo.
Neste país, os "wasp" (sigla em inglês para "branco anglo-saxão protestante") não passam de 50% da população total. Em todas as cidades, pessoas praticamente do mundo inteiro se misturam em busca do eldorado tecnológico.
Por outro lado, as mulheres exercem uma pressão cada vez mais poderosa sobre as estruturas. De acordo com dados oficiais do governo americano (revista "Diálogo", janeiro de 1994, introdução ao artigo de Barbara Ehrenreich), 56% de todas as mulheres americanas se definem como feministas. Ora, numa população de 250 milhões de pessoas, isso significa, em números, qualquer coisa perto de 50 milhões de mulheres. Isso também, ao contrário do que é veiculado pela mídia.
E não é para menos. Nos EUA, mais do que em qualquer outro país, as mulheres sentem duramente na carne o que é a competição pelo mercado de trabalho. E, ao que parece, elas estão ganhando a luta (leia artigo publicado na Folha, de 12/01/97). Nas universidades, há mais de 500 centros de estudos da mulher (no Brasil, 40) que trouxeram as questões de gênero como categorias maiores no debate teórico, inclusive nas ciências exatas.
Além do mais, elas são hoje dez governadoras de Estado, 16 secretárias de Fazenda, uma grande quantidade de prefeitas e uma secretária de Estado. Inclusive, a candidata que tem maiores chances de ganhar as próximas eleições para a prefeitura de Nova York é uma mulher.
Um peso deste certamente consegue fazer explodir, aos poucos e consistentemente, todos os estereótipos e, nestas condições, os mitos sexuais que tornam as mulheres insatisfeitas com seus corpos e limitam o desejo dos homens são, creio, eu, uma espécie em extinção.

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