São Paulo, domingo, 6 de abril de 1997
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Tecnologia do transe

HERMANO VIANNA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Imagine a cena, como que retirada do mais exótico filme iraniano: um brasileiro, cansado de se sentir pouco informado sobre os novos rumos do pop contemporâneo, decide finalmente se deixar seduzir pela propaganda dos cadernos culturais dos jornais e penetrar no mundo das raves.
Ele chega no local da festa. Nos primeiros momentos, não consegue decifrar exatamente o que acontece na pista de dança. Suas primeiras impressões são apenas auditivas: o que mais se ouve é um som percussivo poderoso e quase ensurdecedor, que se repete hipnoticamente. Os vocais, quando eles existem, parecem variar sobre um único tema: "Deixe a batida tomar conta do seu corpo!" Ou: "Get out of your mind!" (Saia da sua mente). Milhares de pessoas parecem estar ali justamente para seguir aquelas ordens.
Quando as imagens da pista de dança entram em foco, qualquer observador poderá sentir a energia "durkheimiana" (vide "Formas Elementares da Vida Religiosa") gerada por tamanho esforço coletivo para se entrar em transe. Do movimento robótico das luzes aos estimulantes (alguns ilegais, outros não) consumidos pelos dançarinos, tudo parece estar ali com a "função" de facilitar a produção de um estado que, não apenas como referência a uma droga muito consumida nesses ambientes, poderia ser chamado de extático.
A combinação funciona: nas sociedades contemporâneas, as raves são os espaços menos esotéricos (pois não envolvem iniciações religiosas) e mais internacionais, em que o êxtase é produzido em massa. Nosso brasileiro, mais ou menos familiarizado com os rituais religiosos do candomblé ou da umbanda, não resiste a fazer a comparação: ele está diante de um terreirão eletrônico. O paralelo não é de todo absurdo.
As raves não são um universo homogêneo. Uma infinidade de estilos musicais (tecno, garage, acid house, trance, ambient, goa trance, acid jazz, jungle, trip hop, entre tantos outros) embala o "transe" de dançarinos de todo o planeta. Mas todos esses estilos saíram do mesmo caldeirão cultural que nos deu os toques dos orixás: a cada vez mais globalizada diáspora africana.
O hip hop (pai do trip hop e do acid jazz) nasceu nos guetos negros de Nova York. O house (pai do acid house e do garage) nasceu nos guetos negros (e gays) de Chicago. O tecno (pai do trance) nasceu nos guetos negros de Detroit (EUA). E o jungle nasceu nos guetos negros de Londres. Ao tentar desenhar a árvore genealógica de todos esses vários "beats" (não importa as medidas de BPM, ou "beats" -batidas- por minuto, que os diferenciam), chegaremos aos mesmos antepassados do rock, do funk, do soul, do blues, do jazz.
O jornalista/ensaísta Michael Ventura, autor de algumas das mais interessantes análises da cultura contemporânea norte-americana, já mostrou que a movimentação cultural que está na origem de todas essas músicas tem como centro irradiador principal a Congo Square de Nova Orleans (EUA), justamente o local em cujos arredores os principais pais e mães-de-santo do "voodoo" estabeleciam seus terreiros. Naquela praça os negros podiam, ao contrário de em outros lugares dos Estados Unidos, tocar tambor, bater lata, manter o "beat" vivo.
Durante todo o século 20, esse "beat", com todo o complexo cultural que ele implica, contaminou toda a música popular do planeta. Hoje até a trilha sonora dos filmes de Bombaim são produtos do encontro da música indiana com o tecno. É uma grande vitória africana. Generalizando uma música da cantora Grace Jones, é possível dizer que hoje somos todos "escravos do ritmo". A cultura da diáspora africana vai, aos poucos, dando esse presente para o mundo: a tecnologia para entrarmos em transe e nos libertamos -nem que seja por alguns minutos- de nós mesmos. Pode existir dádiva maior?
Tecnologia do transe: essa é a expressão literalmente correta. Não apenas como uma analogia à descrição, feita pelo historiador das religiões Mircea Eliade, do xamã como o detentor da tecnologia dos estados extáticos. A pertinência é mais óbvia: a diáspora africana aprendeu a usar a tecnologia ocidental (por muito tempo propriedade exclusiva de corporações controladas por machistas caucasianos) à sua maneira, com finalidades nunca imaginadas por seus inventores. Os negros colocam as máquinas para dançar, para produzir "diversão e arte" contra a ordem da produtividade industrial.
Para isso se apossam das idéias mais extremistas desenvolvidas no território das vanguardas históricas da música contemporânea. Qualquer informação entra na dança (e, por intermédio da dança, no pensamento). Como diz o tecnoxamã/jornalista Erik Davis -em texto sobre as pinturas de Paul D. Miller, mais conhecido como DJ Spooky (intelectual afro-americano, espécie de líder de um movimento musical apelidado de "illbient", o lado negro do ambient)-, o "mais extraordinário produto tecnocultural da diáspora africana" é "o feedback mutante entre músicas e máquinas".

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