São Paulo, domingo, 6 de abril de 1997
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TECNO

ERIKA PALOMINO
COLUNISTA DA FOLHA

Os anos 90 seguiam até agora sem definição. A juventude desta década permanecia um enigma para a indústria, para a mídia e para os pais destes jovens. Logo na virada do calendário de 90/91, a ausência de um denominador estabelecia o que se convencionou chamar de Geração X, a letra da dúvida. Era pouco.
Foram precisos alguns anos para que, de novo, um som conseguisse encontrar interseções entre garotos e garotas de todo o mundo. Em tempos de globalização, Internet e outras United Colors, a tarefa não era pequena. Jovens de todo o mundo se unem neste momento em torno da música tecno.
A tentativa já vinha com a house music em meados dos anos 80 -vide o termo "house nation", para determinar a "nação house". Aspectos sociais e de comportamento somaram-se com o passar dos anos e, agora, o tecno se transforma na trilha sonora da vida destas pessoas. Paralelamente, a iconografia relativa a este universo se estabelece como a cara de um movimento.
Sem letras para dificultar a comunicação entre idiomas, o tecno se propaga. Nesta temporada, ganha de fato caráter mundial com a conquista do último território: os Estados Unidos (de onde se originou), com nomes como Underworld e Prodigy garantindo seu êxito comercial.
Os adeptos do tecno e da cultura do underground formam o exército dos jovens dos anos 90, o novo exército do som. As roupas, o gosto pela mesma música e a atitude os tornam identificáveis em qualquer lugar do mundo. A sensação de pertencer a um grupo ou núcleo, a idéia de fazer parte de um movimento, de uma coletividade, de estabelecer um "nós" contra o mainstream percorrem fronteiras territoriais, sociais e sexuais. O tecno ganha contornos de cultura, quase de religião.
Em São Paulo, há dois anos, na fase embrionária do tecno na cidade, seus fãs usavam a camiseta: "Eu compreendo a nova linguagem", em oposição a quem preferia o house e o garage.
É árida a iniciação. O primeiro contato com as batidas pesadas e a estrutura da música não se faz de modo tranquilo. Deve-se acostumar aos poucos, às vezes insistir. A cultura do tecno remonta à chamada cultura club -no Brasil algo desvirtuada devido à explosão da onda clubber, há coisa de quatro anos. De toda forma, com alguns valores importados dos EUA e da Inglaterra, a cena brasileira atende aos mesmos princípios de funcionamento, de caráter global.
A cultura dos clubes é também a cultura do gosto, em que se associam pessoas de preferências musicais semelhantes, junto à opção por pessoas com semelhante modo de vida.
Esse elitismo velado -quase em forma de separatismo- determina a distinção diante dos "outros": é o hype versus o mainstream, o underground contra o gosto mais comum.
Em Londres, por exemplo, são rotina as chamadas "door policy", a seleção na porta dos clubes que impede a penetração de outsiders. Aqui, onde o número de pessoas da cena não é tão grande assim, promoters e donos de casas noturnas não podem se dar ao luxo de vetar a entrada de alguém. Estabelecem-se, assim, os chamados clãs.
"Clãs" são as turmas mais fechadas, grupos de amigos, subgrupos dentro de um subgrupo. Os clãs frequentam lugares específicos; atendem também a determinadas preferências dentro do próprio tecno; ficam em lugares pré-estabelecidos por eles mesmos dentro dos clubes e não se misturam com tanta frequência.
Entrar no universo do tecno exige a correta utilização de códigos de vestir, de falar, de dançar, de frequentar. Neste mundo em que DJs e produtores são os heróis ao lado, é preciso conhecer as músicas e os grupos quase sempre obscuros; ter os discos e as fitas (gravadas pelos mesmos DJs) e, melhor ainda, ser amigo dos DJs.
A pesquisadora norte-americana Sarah Thornton passou três anos estudando a cena club inglesa, tendo como resultado a tese de pós-graduação "Club Cultures". No livro, publicado em 95 em Londres, a autora avalia a questão do "subcapital cultural".
Seu ponto de partida são as idéias do sociólogo francês Pierre Bourdieu, sobretudo na obra "Distinction" (1984), em que ele chama de "capital cultural" o conhecimento acumulado por meio da educação e do conhecimento que confere status social a quem o possui.
Daí, o "capital social" avalia nem tanto o que você conhece, mas quem você conhece e -mais importante- quem conhece você. Uma definição acadêmica para os nossos "descolados".
Pois o "subcapital cultural" exemplifica então sua informação musical, o corte e a cor de seu cabelo, sua tatuagem, seu piercing no lugar certo, suas peças das grifes certas do underground, seu look, onde você dança na pista, onde você se senta, seu nome na lista, o modo como você entra no clube, o horário; quem você cumprimenta e como. Complicada essa cultura club.
O clube e seu universo paralelo -música alta, a tal cultura do "dowhatchalike" (faça o que quiser), interior com vídeos e iluminação psicodélicos- entram como fonte de escapismo, como templo de independência e, ainda, o espaço em que ocorre a passagem da adolescência para uma juventude mais livre.
Nesta liberdade, a opção sexual permite o livre trânsito de sexualidades, num lugar em que todos parecem mais interessados na dança e na música. O Ecstasy -droga associada à cultura tecno- promove menos o sexo grupal do que a alegada comunhão de sensações e vivências dentro do lugar mágico que é a pista de dança. Cabe aqui a palavra "togetherness", de novo remetendo a experiências compartilhadas.
Com este caráter coletivo ressaltado, o tecno promove uma revolução de costumes. Exatamente neste momento em que obriga a cultura de massa a se render a suas excêntricas regras de funcionamento, em que amplia a outros públicos a magnificência de seu som e em que posiciona seus adeptos como vanguarda da era da comunicação e como ponto de partida da contracultura dos anos 90.
Descobriu-se o rosto desta geração. Ele está sorrindo, suado e tem os olhos brilhando.

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