São Paulo, quarta-feira, 9 de abril de 1997
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A egolatria demófoba do tucanato

ELIO GASPARI

A retórica do professor Fernando Henrique Cardoso e de seus grãos-tucanos está se tornando uma mistura cruel de egolatria com demofobia. A coisa funciona mais ou menos assim:
Primeira Pequena Verdade: tudo o que o governo faz está certo. Até aí nada demais, porque falar mal do governo não é papel do governante, mas da oposição.
Segundo Pequena Verdade: todas as críticas genéricas são produto da ignorância. Coisa de neobobos. O governador Mário Covas, por exemplo, diz que a violência policial é um problema cultural. Vai daí, só quem tem nível cultural para entender a cultura nacional é que pode analisar corretamente a sessão de bolos que os PMs deram naquele garoto com a camiseta do Botafogo, em Cidade de Deus.
Terceira Pequena Verdade: todas as críticas específicas são generalizações injustas. Em julho de 96, FFHH dizia que o problema do desemprego era "um fato isolado". Em março de 95, quando se viu na televisão o assassinato de um assaltante carioca por um PM, o governador Marcello Alencar disse que se tratava de "episódio isolado". O ministro da Justiça, Nelson Jobim, disse que o episódio de Diadema foi um "fato isolado". (Os tucanos não explicam como um problema pode ser ao mesmo tempo geral, por cultural, e específico, por isolado.)
As Três Pequenas Verdades confluem para a construção da Grande Verdade Tucana: o Brasil é uma gigantesca desordem, habitado por uma massa pouco qualificada (até mesmo "caipira", como já ensinou FFHH) e dirigida por uma elite na qual um governo de iluminados é obrigado a conviver com duas dúzias de neobobos.
Na segunda-feira, falando ao "Seminário Internacional de Emprego e Relações de Trabalho", FFHH deu uma demonstração de egolatria demófoba.
Primeiro a egolatria.
Começou qualificando a si próprio, à platéia e aos gentios dignos de ouvi-lo: "Aqueles que leram seus livros de história sabem que um dos primeiros momentos de desenvolvimento do capitalismo comercial foi precisamente quando houve o surto de descobertas". Quem não leu os livros ou não sabe disso, está fora, porque FFHH não falava na qualidade de presidente da República, mas na condição de Senhor da História.
Mas nem todos os que leram "seus livros de história" estão a sua altura. Há ainda um nível superior, o dos bem-aventurados, capazes de entender a palavra do Senhor da História em toda sua profundidade. São os que "tiveram a ventura de ler Montesquieu". (Era aquele filósofo francês que falava na conveniência do funcionamento harmônico dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Nada a ver com medidas provisórias.)
Um bem-aventurado que leu os livros de história e os de Montesquieu pode aprender com FFHH que a dispensa da mão-de-obra e a migração incham as grandes cidades. "Basta ler Dickens."
Aí é que a porca torce o rabo. O Grande Senhor da História e das Leis vai buscar o exemplo da miséria dos processos de transformação econômica num escritor inglês do século 19 quando a televisão do país que governa está mostrando o que a polícia faz em Diadema e Cidade de Deus. Não há cenas semelhantes em Dickens. Isso fazendo-se de conta que se esquece o fato de que, a partir das cenas do tempo de Dickens, o conservadorismo inglês reformou aquela sociedade injusta. Na mesma época, o conservadorismo brasileiro forçava o governo a sustentar a escravidão e a dificultar a imigração européia, mantendo o preço das terras nacionais a preços superiores aos americanos.
A demofobia do discurso de FFHH baseia-se na desqualificação do país. Ele diz que há pessoas inempregáveis (o que não é novidade) e que essa situação só pode ser revertida se houver um novo sindicalismo, um novo empresariado e um novo poder público. "Não temos nada disso no Brasil." Nesse caso, só temos Fernando Henrique Cardoso, Montesquieu, Dickens e Sérgio Motta.
Fernando Henrique Cardoso produziu na segunda-feira o primeiro discurso de sua carreira contaminado pelo cesarismo.
Um desempregado inempregável que não leu Dickens, não teve a ventura de encontrar Montesquieu e limita sua leitura histórica aos números do governo de FFHH sabe coisas diferentes.
Sabe que o crescimento econômico de seus dois anos de governo é pífio. Enquanto os Estados Unidos, Inglaterra e Alemanha estão apertando cada vez mais os controles para aperfeiçoar seus sistemas de avaliação escolar, o governo de FFHH cuida desse assunto devagar, quase parando. Enquanto os países industrializados aperfeiçoam seus sistemas de treinamento de mão-de-obra, procurando facilitar o acesso dos jovens ao primeiro emprego, o de FFHH nada fez nessa direção. Os números do trabalho do tucanato em relação à mão-de-obra e ao emprego estão numa situação pior que os bairros pobres de Londres vistos por Dickens.
No ano passado, o governo do tucano Marcello Alencar podia ter usado recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador para socorrer desempregados e inempregáveis. Assinou 27 convênios, nada fez e acabou devolvendo R$ 5 milhões. São do Rio as cenas de espancamento de pobres em Cidade de Deus. Talvez sejam inempregáveis, mas nem por isso devem levar bolos.
Em São Paulo, de quase R$ 13 milhões disponíveis, o governo conseguiu aplicar apenas 38%. Devolveu R$ 8 milhões. Diadema fica em São Paulo.
(Uma questão de Justiça determina que se registre o sucesso obtido pelo grão-tucano Tasso Jereissati no Ceará. Aplicou praticamente todo o dinheiro que lhe repassaram.)
Quando a egolatria tucana recorre à demofobia para se autoglorificar, está praticando um exercício fútil. Nem que FFHH coloque Montesquieu no Ministério da Justiça ou Dickens no do Trabalho, o governo haverá de funcionar, se ele se sente melhor confundindo o exercício do poder com a prática de um palavrório que precisa negar o país para enaltecer o que não faz.

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