São Paulo, quarta-feira, 9 de abril de 1997
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A louca

CARLOS HEITOR CONY

Rio de Janeiro - Aos 50 anos, parecia ter 70, tão perdida estava na mansa inutilidade de sua solidão. "É aí que está o problema", disse o psiquiatra que a examinou. Ela não tinha mais nada para dar, perdera pai e mãe, os irmãos a abandonaram, os filhos pouco a pouco a deixaram da mesma forma como o marido, anos atrás, a deixara. Sobrou-lhe a imensidão do muito tempo para coisa alguma.
Tudo viera lentamente. Começara a ter dificuldade em guardar nomes e datas, daí que comprou um caderno -mais tarde dezenas de outros- e ia tomando nota do que via ou ouvia. Anotações importantíssimas para ela: "A empregada da casa de Valéria chama-se Rosa".
Assim como palavra puxa palavra, lembrança puxa lembrança, um esquecimento puxava outro. Pode parecer absurdo, mas tudo é matematicamente lógico para os loucos. As anotações iam se arredondando: "Rosa é portuguesa, tem 45 anos e usa uma blusa onde está escrito 'Eu (coração) Portugal"'. Ao ser internada na clínica psiquiátrica, tinha pilhas de cadernos com anotações iguais.
No início, ninguém percebia que era loucura. Foi preciso que os vizinhos começassem a reclamar: ela parava as pessoas nos corredores, depois na rua, perguntava o nome, idade, profissão, anotando tudo no caderno com uma letra espantosamente ordenada e limpa. Até que, noite alta, desceu à rua e foi interrogar dois namorados que se beijavam, queria saber o nome deles, a marca do tênis que usavam. Chamaram o psiquiatra.
Que por sua vez chamou os filhos. Providenciaram a internação. Na hora de ir embora, ela quis levar a montanha de cadernos com o tesouro de suas anotações. Garantiram-lhe que não precisava, ninguém mexeria neles. Ela insistiu. Um dos filhos perguntou: "Mas para quê?" Ela esbugalhou os olhos: "E eu sei? Se soubesse, não estaria indo para a clínica!" Todos então compreenderam que ela nunca estivera tão lúcida.

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